UMA AJUDA PARA PAPAI NOEL

Segunda semana de dezembro. Shopping centers lotados de gente comprando os primeiros presentes de Natal. Casais de namorados e pais de família estressados. Crianças de barriga cheia faziam manha por um lanche ou um brinquedo muito caro. Alguns estavam ali apenas para ir ao cinema, ao salão de beleza como de costume ou fazer compras alheias ao Natal.

Na praça central de um shopping em Botafogo, pais eram arrastados pelos filhos menores que queriam ver o Papai Noel pessoalmente, sentar no seu colo, tirar fotografia e conversar com ele para pedir presentes. Muitos irmãos mais velhos contrariados ou mesmo algumas das próprias crianças, que tiveram o papel invertido: arrastadas pelos pais saudosos da infância que não volta mais.

Assistir a tudo isso já era rotina há cinco anos para Evaristo, um Papai Noel nato. Pele branca, olhos azuis, bochecha rosada, barba branca, barriga grande, muita simpatia por crianças e paciência. Tudo nele era natural.

Evaristo se achava um homem feliz e satisfeito. Mesmo morando em uma pequena casa na André Pinto, uma rua tranqüila de Ramos que resistiu ao crescimento do bairro. Trabalhou durante trinta anos num banco privado na Avenida Rio Branco, no centro da cidade. Aposentou-se e ganhou uma pensão mediana: nem uma miséria, nem muito polpuda.

Querendo comprar os melhores presentes para os netos, fazer uma boa ceia de natal e reveillon, além de guardar um pouco para o ano novo e, também, passar o tempo, Evaristo decidiu trabalhar como Papai Noel de shopping.

No final de setembro leu o anúncio no jornal. Enfrentou uma fila de duzentos candidatos para se inscrever. No início de novembro foi chamado para a entrevista, que não durou nem um minuto. O entrevistador, assim que o viu entrar na sala e ouviu a sua voz grossa e pausada, o contratou logo de cara.

Trabalhava da tarde até a noite, de domingo a domingo. O shopping tinha um Papai Noel reserva quando o titular precisava descansar. Mas o interino não era tão bom quanto Evaristo, que gostou tanto da experiência que aceitou a proposta da administração do shopping de permanecer como fixo nos natais seguintes.

Em cinco anos, Evaristo se acostumou com a rotina de ver crianças alegres, felizes ou manhosas sentarem em seu colo, fotografarem e pedirem os mais impossíveis presentes. De uma simples bola, passando por um vídeo-game até pedidos de emprego para o pai, de uma casa para a família, reconciliação dos pais que estavam prestes a se divorciarem e futuros irmãozinhos. Já levou até soco na barriga de criança pirracenta e daquelas que achavam que a barriga era postiça. Também teve a barba puxada com força várias vezes.

Um dia viveu uma experiência inédita. Uma bela menina, aparentando uns cinco ou seis anos, negra, cabelos cacheados até os ombros e amarrados com laços vermelhos, vestido branco com leves estampas florais em azul, babados em filó, sentou-se em seu colo e o encarou com um sorriso enigmático por mais de um minuto, sem dizer nada.

Evaristo ficou constrangido, mas procurou quebrar o gelo:

— Ho, ho, ho! O que você vai querer de Natal, minha linda menina? Perguntou, com aquela entonação típica.

— Nada. Só quero observar o senhor.

Evaristo ficou preocupado. A menina ainda o encarou por mais um minuto, até que ela desceu e foi embora em silêncio. Antes que o Papai Noel pudesse mostrar-se intrigado, logo um menino moreno, de cabelo “romeuzinho” sentou-se em seu colo e pediu um carrinho de controle remoto. Depois vieram outras crianças, dando continuidade à rotina de sempre.

A menina negra já estava quase saindo de sua cansada cabeça quando, dois dias depois, durante o turno da noite, ela sentou-se novamente em seu colo. Estava com o mesmo vestido branco, os mesmos laços vermelhos no cabelo e o mesmo olhar misterioso.

Já prevendo que ela ia responder que apenas queria observá-lo, Evaristo se adiantou:

— Ho, ho, ho, a linda menina vai querer uma boneca?

A menina balançou a cabeça negativamente, repetindo o gesto a cada vez que ele insistia:

— Já, sei! Uma bicicleta? Uma casinha? Uma roupa? Uma casa própria para os seus pais? Um emprego para o seu pai?

— Eu só quero ajudar o senhor.

— Me ajudar?

— Sim, o senhor está precisando de ajuda.

A menina se levantou e foi embora mais uma vez. Evaristo ainda chamou por ela, chegando a se levantar do seu trono para quase segui-la.

— Vem cá, minha filha.

Só não seguiu porque foi puxado pela barra do casaco por outra menina de quatro ou cinco anos, uma lourinha de cabelos cacheados.

— Papai Noel, você me dá uma boneca?

— Claro, minha filha. Ho, ho, ho.

E Evaristo voltou a se sentar no trono, conversou com a menina lourinha e posou com ela. Sem tirar os olhos da criança misteriosa.

No quinto dia em que viu a menina, que desta vez apenas o observou, sem sentar-se no seu colo, Evaristo, depois do expediente e já sem a fantasia de Papai Noel, foi à central de monitoramento do shopping. Pediu ao Fonseca, coordenador da segurança, para verificar o vídeo dos dois dias em que conversou com a menina. Ele explicou toda a história ao funcionário do shopping, seu amigo desde quando começou a trabalhar como o bom velhinho.

Fonseca localizou a fita e colocou no aparelho. Aparecia no vídeo realmente uma menina negra de vestido passeando pelo shopping. Estava sozinha. Depois viu a menina sentada no colo do Papai Noel. Evaristo ainda pediu para o amigo voltar a fita várias vezes e verificar de onde ela tinha surgido. A primeira aparição da menina nas imagens do circuito foi feita pela câmera externa, no estacionamento do shopping, por onde ela já caminhava.

O segurança ainda brincou com o amigo, achando que ele estava com medo de assombração. Evaristo preferiu acreditar que ela era apenas uma menina perdida dos pais. Fonseca chegou a questionar porque ela se perderia duas vezes. Evaristo respondeu que ela deve ter tido azar e isso era possível por causa do movimento do shopping. Fonseca questionou porque ela não aprendeu a marcar um ponto de referência com a mãe. E ainda completou que nenhuma menina usaria um vestido tão antigo quanto àquele para ir a um shopping. Evaristo se despediu resmungando, aos risos, que ele queria o deixar impressionado.

Já passava da meia-noite na antevéspera de Natal quando Evaristo chegou em sua simples casa, em Ramos. Acendeu a luz, jogou a bolsa no sofá e sentou-se na poltrona. Recostou por alguns segundos. Fechou os olhos. Quando abriu, encontrou a menina sentada na outra poltrona, embaixo da janela ainda fechada, olhando para ele.

Apesar de bondoso, desta vez, Evaristo assustou-se, levantou e ralhou com a menina:

— Meu Deus do céu, minha filha. O que você está fazendo na minha casa a essa hora? Se alguém me pega com você aqui é capaz de me prender por pedofilia.

— Vim te ajudar.

— Ajudar como? Há dias que você vai ao shopping, senta no meu colo e diz que quer me ajudar. Mas quer me ajudar em quê?

— Em tudo.

— Qual é o seu nome?

— Meu nome não é importante. O que importa é que você seja feliz e faça as pazes com a sua família.

— Você não sabe nada da minha vida, querida. Eu sou muito feliz. Moro aqui satisfeito e tenho boa aposentadoria. Trabalho como Papai Noel para ganhar um dinheirinho extra e comprar presentes caros para os meus netos que moram em São Paulo.

— O senhor tem certeza que vive feliz?

A pergunta da menina derrubou Evaristo. Ele ficou mudo. Abaixou a cabeça e virou as costas. Sentou de volta na poltrona. Recostou a cabeça com culpa. Olhou para o teto. Finalmente suspirou e confessou:

— Você tem razão. Não vivo feliz. Sofro com a ausência da minha esposa há mais de cinco anos e do meu filho há dez. Foi exatamente no ano em que a minha esposa morreu que eu decidi trabalhar de Papai Noel no shopping. Juntava dinheiro para comprar presentes para os meus netos na esperança de que eles viessem para o Rio. Esperava até a meia-noite do dia 24, mas nada. Passo o Natal e o Reveillon sozinho há cinco anos. Me tranco no quarto e choro a noite inteira. Eu deveria ter me acostumado a isso, mas nunca consigo.

Evaristo leva a cabeça às mãos e chora compulsivamente. A menina se levantou da outra poltrona, se aproximou e o acariciou. O velho e deprimido Papai Noel continuou o desabafo, aos prantos, entre fungadas do nariz:

— Eu só me acostumo a trabalhar como Papai Noel. Gosto de crianças. Se não fosse este emprego, que não é por causa do dinheiro, eu já teria morrido de depressão.

— Por que você não liga para o seu filho?

— Ele não me atende. Se recusa a falar comigo desde o enterro da minha esposa.

— Por quê?

— Meu filho é jornalista e foi trabalhar em São Paulo. Se estabeleceu por lá, onde casou e teve filhos. Ele queria nos levar, mas eu não quis. Gosto do Rio. Não troco a minha cidade por nada. Insistiu para que a minha esposa fosse com ele, mas eu não deixei. Ele parou de falar comigo. Um dia, a minha esposa faleceu subitamente e ele não me perdoou por deixá-la morrer longe dele. Acreditava até que ela não morreria lá. Coisas de quem acha que tudo de São Paulo é melhor do que o do Rio. Rompeu comigo e escondeu os meus netos de mim. E desde então vivo nesta esperança de encontrar os meus netos e o meu filho. Terminou Evaristo com a voz embargada.

— Eu acho que você deve ligar para ele.

— Ligar pra quê? Para ouvir a mesma frieza? Não. Este ano eu vou me acostumar. Já comprei os presentes dos meus netos deste ano e vou deixar guardados. O que eu comprei para a ceia eu vou doar. E finalmente vou aceitar o convite da minha vizinha.

— Ligue sim. Confie em mim.

— Não posso ligar agora, né? Já é quase uma hora da manhã. Revoltado comigo do jeito que ele está é capaz de ficar ainda mais raivoso.

— Eu voltarei de manhã. E não vou largar do seu pé enquanto não ligar. Tchau.

A menina encaminhou-se para a porta. Evaristo ainda insistiu:

— Vem cá, minha filha. Não saia sozinha a essa hora.

Os vizinhos ouviram o grito de Evaristo e acharam que ele tinha enlouquecido, falando sozinho. Mas era apenas um sonho. O velho acordou com o dia claro na mesma poltrona em que sentou ao chegar cansado do trabalho na véspera.

Ao se levantar, encontrou a menina com o telefone e um papel na mão. Era o número do apartamento do seu filho. Finalmente convencido, Evaristo pegou o telefone da menina e ligou para São Paulo. Mas antes disse sorrindo:

— Está bem, menina. Você venceu.

A empregada do filho atendeu com aquele carregado sotaque paulista e disse que a família inteira saiu para viajar há dias. Não soube informar para onde. Evaristo agradeceu e comentou frustrado e sarcástico com a menina que o acompanhava.

— Com certeza, para cá eles não vêm.

Evaristo desligou o telefone e foi para o banheiro se arrumar para o trabalho, pois era véspera de Natal e ele trabalharia no turno da manhã no shopping. A menina o segurou antes de sair pela porta da frente:

— Pode confiar em mim.

Durante o trabalho no shopping como Papai Noel, Evaristo não viu a menina em nenhum momento. Desempenhou o seu papel normalmente, como fazia há cinco anos. Depois do expediente, que nesse dia terminou às cinco da tarde, ganhou a cesta de Natal da administração, bebeu um copo de vinho, comeu um bolinho de bacalhau e duas rabanadas com alguns colegas, entre eles o Fonseca da segurança, e voltou para casa, já preparado para mais um ano de Natal sozinho.

Já eram quase nove horas quando chegou em Ramos. Encontrou um homem louro e gordinho, aparentando trinta e cinco anos, batendo palmas na frente de sua casa. Estava acompanhado de uma mulher morena de quadril largo e dois meninos. Evaristo correu e perguntou:

— O senhor deseja falar com quem?

— Eu queria falar com o Seu Evaristo. O senhor conhece? Perguntou o homem.

— Claro que sim. Sou eu mesmo.

— Pai?

— Meu filho?

Evaristo e o filho se abraçaram por quase meia hora. Emocionados. Choravam como crianças. Entraram em casa. Franco contou que estava esperando um vôo na ponte aérea há cinco dias. O Papai Noel do shopping foi apresentado à nora e aos netos que não conhecia, apesar de comprar presentes para eles durante cinco anos. Era um menino de nove e outro de sete. A nora preparou a ceia, com a ajuda do próprio Evaristo, que teve um Natal feliz depois de dez anos.

À meia-noite, trocaram presentes. Franco deu um celular para o pai e Evaristo retribuiu com uma camisa. E ainda deu os presentes que acumulou para os netos nos últimos anos, além de novos comprados este ano. Depois da ceia, Evaristo e Franco sorriram agradecidos para a menina negra que respondeu com um aceno de despedida.

Evaristo foi passar o Ano Novo em São Paulo com a família do filho. Já a menina se transformou em uma bela mulher morena de pele clara, olhos verdes, seios fartos e vestido tomara-que-caia azul. Usou a imagem de uma criança, morta em um deslizamento de terra durante uma enchente há quarenta anos, para amolecer o coração de pai e filho, incentivando-os a fazerem as pazes.

Gustavo do Carmo
Enviado por Gustavo do Carmo em 24/12/2009
Código do texto: T1993477
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