Ao Que Muitos Chamam Natal
Do lugar do motorista, no carro parado, no estacionamento, ela observava meio emburrada o vai-vem tão típico das vésperas de Natal. Não agüentava mais todo aquele consumismo. Todo ano é a mesma coisa! O clima melancólico, os lembretes de que muitos não têm sequer o que comer... E as campanhas tilintando: Compre Baton! Compre Baton! E tudo é sempre coca-cooolaa. Não, não suportava mais aquilo! Se possível, gostaria de dormir e acordar bem depois de haver baixado a poeira de todas as festas de fim de ano. Em meio às suas revoltas sazonais, contra o sistema, uma coisa naquele estacionamento movimentado chamou-lhe a atenção. Tratava-se de uma menina que, naquele momento, começava a acomodar suas compras natalinas num pequeno carro, modelo popular. Talvez aquela mocinha não tivesse mais que 18 anos... Viu quando ela, primeiro, trouxe uma caixa plástica transparente. Dentro da caixa, várias bolas douradas e outros enfeites natalinos espremendo-se e concorrendo entre si, esperando ansiosos para saber a quem tocaria a sorte de ficar com a vista mais legal da janela. Nem adiantou a briga dos enfeites, pois a menina acomodou a caixa no chão do automóvel, no banco traseiro, escondendo-a, ou melhor protegendo-a, à sombra do banco do passageiro. E ela, nossa voyeur, de seu posto, chegou a ouvir os gritos de decepção e os choros, que em nada faziam recordar os chorinhos musicais chorados com tanto gosto pelos chorões brasileiros. Era mesmo um berreiro! Irredutível, a menina voltou ao carrinho de compras, agora para retornar com duas orquídeas, cada uma em cada vaso. “Embora não passem de parasitas, chame uma orquídea de aproveitadora ou sanguessuga pra você ver aquilo roxo, chame! Que nada,” pensava nossa voyeur, “chiques do jeito que essas plantas são e tão delicadas... Se molhar demais, murcham; se molhar de menos, secam do mesmo jeito! Não entendo as orquídeas, tão belas e tão temperamentais. Não se fazem mais plantas como antigamente, isso sim! Todas estragadas em laboratório!” A menina começou a acomodar as orquídeas no automóvel. E nossa observadora chegou a ouvir o choramingar de uma das duas: “Ai, vai estragar meu visual! Depressa, depressa!” Chuviscava. Parecendo entender suas queixas, a menina pôs uma delas sobre o banco da motorista, enquanto buscava acomodar a outra em algum lugar no banco de trás. Nossa voyeur não sabia como fizera a menina, pois as orquídeas foram engolidas por aquele automóvel, por fora tão pequeno e, por dentro, se duvidar, com compartimentos simulando buracos-negros engolidores de bagagens, ainda que fosse um sumidouro temporário, só durante o deslocamento. Terminada a operação super-cuidadosa, a menina devolveu o carrinho de compras ao estabelecimento e voltou apressada à sua nave. Talvez essa pressa última tenha sido só por causa da leve chuva... Por todo o tempo que observara sua atuação, em nenhum momento nossa espia percebeu sequer uma ruga de impaciência no rosto da menina. Muito pelo contrário, a menina moveu-se tão devagar durante o carregamento de seu pequeno veículo que, caso tivéssemos que ficar ali o dia todo, por certo não nos entediaríamos com aquela dança mística, quase ritual. Enquanto nossa olheira, em seu posto, aborrecia-se pensando que todo final de ano era a mesma coisa, a menina, ao contrário, parecia estar curtindo cada segundo daquelas compras, e feitas num dia assim tão cinza, chuvoso, ranzinza. O que levou a observadora a pensar que talvez fosse aquele o primeiro Natal da menina, em sua casa nova. Talvez por isso lhe desse tamanho gosto sair para comprar enfeites, e pagar com o próprio dinheiro. Quem sabe, estivesse organizando a sua primeira ceia de Natal... Poderia também estar curtindo o primeiro automóvel, a liberdade, a sua licença para dirigir, não só veículos, mas também a própria vida, seguindo a direção que bem lhe parecesse, e sem ter que dar satisfações a ninguém! A menina entrou no carro, pôs o cinto de segurança. Nesse momento, pela expressão dela, nossa observadora achou que parecia pensar: “Ôba, a vaga da frente está livre, nem preciso usar a marcha-ré. Era só ligar o motor, por via das dúvidas olhar para os lados e depois seguir.” O caminho estava livre. Naturalmente, a menina o tomou. Êpa, de repente uma freada. Não brusca, claro, para não afetar o humor das melindrosas passageiras. A observadora notou que a menina arrumava rapidamente alguma coisa no banco do passageiro, a seu lado. Um colete de segurança, uma caixa com um circuito de luzes de natal... Pronto! Agora poderia seguir. Olhou de novo, por costume de bom motorista, seguiu por menos de dois metros. Sinalizou a mudança de direção e começou a ir-se embora, devagar. E com ela, a menina, foram-se os murmúrios das bolas douradas. E as orquídeas, como estrelas de cinema, em limusines, escondidas, iam pondo em dia, uma para a outra, os últimos lançamentos, coleções e fuxicos do mundo da moda. Talvez, para as orquídeas, tanto faz se havia ou não uma festa de confraternização, voltada principalmente ao comércio, à que muitos chamavam de Natal.
-- A peça está em falta! Agora, só ano que vem! Vamos?
Aquela voz grave, o barulho da porta do passageiro se abrindo e em seguida fechando bruscamente, a esperança de que nem tudo seria sempre a mesma coisa, o olhar inquiridor, o sorriso bobo, e nem um anjo..., as mãos frias, a menina indo, o frio lá fora, olhar perdido, o fuxico das orquídeas, o choro das bolas, o vai e vem no estacionamento, e nem um anjo..., a menina sumindo, o frio ali dentro, tudo, tudo aquilo tirando a observadora de seus devaneios e trazendo-a de volta à realidade fria e consumidora daquelas vésperas de natal...
“Os sinos soarão no dia de Natal!
Os sinos soarão no dia de Natal!
Anunciado:... (?)”
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Revisado em 18.09.2010