O mar de Clarice

- Há anos que não vejo o mar - pensou Clarice saudosa dos tempos que sentia-se livre para ir onde quisesse.

Estava ela, sentada a beira da janela de seu apartamento, fumando seu cigarro, olhando para a parede de pintura envelhecida e desgastada do predio ao lado, janelas abarrotadas de roupas estendidas nos varais externos e básculas de banheiros imundas devido a dificuldade de limpa-las ou por relaxo do morador mesmo.

- Quem sou eu para pensar isso? Há anos não limpo minha casa nem lavo minhas roupas - pensou Clarice acendendo mais um cigarro, seu ritual de todo entardecer.

O portão da garagem do prédio vizinho abriu-se e um carro entrou no estacionamento do patio descoberto permitindo que Clarice visse as crianças saindo sorrindo do automóvel com seus brinquedos nas mãos. Barulhentas e felizes, abriram a porta a com naturalidade infantil e subiram correndo seguidas por seus pais.

- Há anos desejo ter filhos e casar-me - pensou Clarice bebendo sua segunda lata de cerveja da tarde.

De sua janela viu ao longe uma moça caminhando.

- Há anos sinto necessidade de exercitar-me, ter uma vida mais saudável - pensou Clarice acendendo seu terceiro cigarro daquela tarde na janela. Pediu sua ajudande que lhe buscasse outra lata de cerveja a qual foi prontamente entregue sem demora.

Clarice entao olhou para aquela senhora que há anos a pedido da familia cuidava dela e de seu apartamento.

- O que achas que me falta para ser feliz? - perguntou Clarice.

E na simplicidade de sua bondade a senhora respondeu:

- Parar de olhar pela janela, as portas também se abrem querida.

Com indiferença e sem nada balbuciar, voltou seu olhar para a janela, abriu a lata de cerveja, acendeu outro cigarro, depois mais outro e mais outros. Não houve mais movimento algum naquela rua durante varias horas.

A senhora já havia ido para sua casa, Clarice ja havia perdido a noção das horas perdida em seus pensamentos. Estava só, no escuro a fumar e beber como sempre.

Ali ficou até começar a amanhecer.

Conforme a luz foi iluminando o ambiente, percebeu que a senhora esqueceu a porta principal do apartamento aberta.

- Há anos não vejo esse corredor - pensou Clarice - tudo que preciso me trazem, tudo que peço me dão a mão.

Entao Clarice, com seus 29 anos de idade levantou-se, fechou a janela, pegou um agasalho e calçou um tenis.

- Há anos nao solto meu cabelo - pensou Clarice, e os soltou deixando os cachos castanhos cairem sobre seus ombros.

Foi caminhando em direção a porta, estremecendo, suando frio. Ao pisar na soleira de entrada sentiu-se nauseada, fechou os olhos azuis e deu o primeiro passo, depois o segundo, o terceiro, respirando fundo e lentamente.

Abriu seus olhos.

- Gostava mais do tom de verde das paredes do corredor de tres anos atras.

Cada degrau que descia, parecia sentir um prego entrando em seus pés, alcançou o portão do predio e o abriu. Sentiu a brisa fria da manha ainda nao nascida do sul no inverno.

Correu por dois quarteirões e vislumbrou o mar.

Subitamente lembrou-se que deixara a porta do apartamento e o portao do predio abertos e isso a fez sorrir. Sentou-se na areia fina e lembrou-se de Abigail, a senhora que dela cuidava.

- O que será que ela vai pensar quando chegar e nao me encontrar em casa?

Clarice respirou profundamente, nao lembrava mais do cheiro do mar e ali sentada, depois de anos sentindo-se prisioneira, viu o milagre do sol nascendo.

- Quero mais disso todos os dias.

E no seu intimo sentiu que mesmo todas as portas estando fechadas, sua mente finalmente se abrira para o recomeço.

Lembrei-me agora de uma mensagem que recebi em sonho de um certo cavaleiro.

"Se nada fizeres por ti, chegará a hora que farão por você, talvez nem perceberás, mas chegará o momento em que não será a ti permitido ficar imóvel, vivendo em um mundo em constante movimento."

Clarice? Voltou para sua janela ao entardecer, às vezes sai de manhã para seu lugar preferido que se chama mar.

Lane Miotto
Enviado por Lane Miotto em 21/12/2009
Reeditado em 07/07/2010
Código do texto: T1988593
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