O Segundo Sonho de Eliete
Desde criança, Eliete alimentava o sonho de casar. Casar, como manda a tradição: virgem, de vestido branco, em uma igreja repleta de convidados e flores. A orquestra executando a valsa nupcial e um coro de dezenas de vozes encantando a todos. Tinha a convicção de que a cerimônia perfeita era o segredo para um casamento feliz.
Enquanto o dia tão esperado não chegava, Eliete tratava de obter tudo sobre o assunto. Montou vários álbuns de fotos, uma coleção de vestidos de noiva, arquivos de recortes de jornais e revistas e fez um registro de todos os casamentos que ocorreram na cidade e nos municípios vizinhos, onde, além dos nomes dos noivos, descrevia a festa e a relação dos principais convidados. Tinha um fichário tão detalhado, que nem os registros do cartório eram tão completos.
Seu sonho não era segredo para ninguém, e logo, Eliete passou a ser figura obrigatória em todas as cerimônias. Casamento que não contava com sua presença estava fadado ao fracasso. Se bem que a superstição era tamanha, que ela nunca deixou de ser convidada, e, apenas uma vez, quando estava com uma doença, dessas de infância, não compareceu.
Sonho tão inocente e pueril fez com que Eliete conquistasse a simpatia e a admiração de todos na cidade, menos do homem do cartório que já começava a nutrir certa inveja da moça.
Quem visitasse sua casa, era, logo, convidado a conhecer a coleção de vestidos de noiva, os álbuns de fotos e todo o acervo, guardado com o maior carinho em um armário, no seu quarto. Aliás, havia dois armários no local. O conteúdo do outro móvel ela não revelava a ninguém, nem à sua mãe ou pai. Dizia apenas que ali estava depositado o seu segundo sonho. Mas, o fascínio e a dedicação de Eliete ao casamento eram tão grandes, que ninguém se importava e nem acreditava que ela tivesse um outro sonho. Os ideais de amor, união e família fizeram com que a jovem fosse tema de diversas reportagens nos jornais e nas rádios da região, transformando-a na principal figura da cidade, homenageada até na Câmara de Vereadores por seus valorosos serviços prestados à comunidade.
Tornou-se colunista do jornal local. A mais lida de todos os profissionais do semanário. Dava conselhos às moças que queriam casar, fazia matérias com dicas sobre o casamento, reportagens sobre as cerimônias locais, além de construir o museu do casamento, obra que tornou a cidade conhecida em todo o país, devido a uma reportagem em um programa de televisão, exibido em rede nacional.
A ida a um baile com um rapaz da cidade e sua tardia volta para casa fizeram surgir um boato que poucos levaram a sério. De que naquela noite, Eliete não resistira e perdera a virgindade. Tamanha mentira só podia partir de mentes doentias, disse padre Jacinto.
Logo todos acusaram seu Jurandir, dono do cartório, que teve sua casa pichada e apedrejada. As beatas espalharam a notícia de que ele era um degenerado, um pervertido. Seu Jurandir negou as denúncias, dizendo que aquela jovem que ele sustentava lá na roça, era por puro humanismo. Dona Georgina, esposa do juiz, era uma das mais revoltadas, não só pelas injúrias contra o símbolo municipal, e quem sabe até nacional, da virtude, mas também por lembrar que o marido deixara de aproveitar inúmeros fins-de-semana ao seu lado, para ir pescar com o depravado lá do cartório. “Sabe lá se realmente eles iam pescar ou se iam para a farra, isso sem falar no que aquele tarado pode ter ensinado para o Gomes” indagava-se, preocupada, a mulher do magistrado.
Mas, essas picuinhas foram esquecidas quando o dia tão esperado pela cidade começou a se delinear. Eliete comunicou a todos que enfim havia encontrado o seu príncipe encantado. O rapaz era um jovem médico da capital, filho de uma das mais tradicionais famílias do estado. Conheceram-se, quando ela visitava um antiquário de Porto Alegre, atrás de peças para seu acervo.
A notícia foi recebida com tamanha euforia na cidade, que o prefeito decretou feriado nacional. Lembrado de que só podia oficializar um feriado a nível municipal, seu Olinto não se fez de rogado, e deu três dias de descanso para a população. Uma romaria foi realizada para agradecer a graça e as beatas iniciaram uma novena para que a relação fosse eterna.
O namoro transcorreu dentro dos conformes. Passeios dominicais de mãos dadas na praça central, idas ao cinema, sempre com a presença do irmão menor da noiva e namoros no sofá da sala. Sexo, nem pensar. Era uma das exigências de Eliete. Queria que sua primeira vez se realizasse na noite de núpcias, como manda a tradição. Sua firmeza fez com que a admiração por ela crescesse, ainda mais. Era a noiva que todas as mães desejavam para seus filhos. Dizem que algumas até recorreram a uns despachos para que o namoro não desse certo. Mas, o amor de Eliete era maior do que a inveja silenciosa, que brotava nos corações de um pequeno número de pessoas.
Uma noite, alguém mandou atear fogo no bordel da cidade. Na manhã seguinte, o muro em frente aos escombros tinha pichada a indagação de “Como aquelas vagabundas tinham coragem de viver na terra da pureza e da virtude?”.
A admiração pela moça era tamanha, que várias jovens foram até o consultório médico tentar fazer doutor Alarico “remendar” suas virgindades. Diante da posição contrária do cirurgião, recorreram a um famoso médium espírita que visitava a cidade vizinha e que garantia que um remédio à base de ervas devolvia às jovens, sua castidade. Padre Jacinto ao saber de tamanho desatino, pregou um sermão garantindo o fogo dos infernos àquelas que recorressem a tal insanidade, deixando claro, que mesmo que elas retornassem a forma original, a memória do povo não deixaria que aquelas mulheres, que pecaram uma vez ou mais, se colocassem no pedestal ao lado de Eliete. Ao ouvir as palavras do sacerdote, Jandira, filha de uma fervorosa paroquiana, ao confessar que havia pecado uma vez com o namorado e vendo que seu caso não tinha mais solução, resolveu transar com todo mundo, indo depois trabalhar em uma famosa casa noturna da capital, atitude que deixou sua mãe em tal estado de perturbação, que ela virou crente.
Quase todos os dias, a mãe embarcava em um ônibus com destino a Porto Alegre, onde tentava demover a filha de suas idéias demoníacas. Chegou a tal ponto, que a pobre mulher gastava toda a pensão do falecido só em passagens, o que a fez recorrer à prefeitura, atrás da permissão, para que pudesse pegar carona nos carros, que levavam doentes para os hospitais da capital. Mas, frente à teimosia de Jandira e ao fabuloso lucro semanal que a jovem obtinha na casa noturna, a mulher se mudou de mala e cuia para Porto Alegre, tornando-se sua empresária.
Face à proximidade do casamento do século, como a imprensa local já se referia ao evento, o prefeito mandou reformar a igreja matriz, construindo um chafariz na praça central, no qual um casal de namorados de mãos dadas abençoava a cidade.
A floricultura nunca recebera tantas encomendas, como nas semanas que antecederam ao casamento. Os proprietários de lojas de presentes viram maravilhados seus estoques se extinguirem em poucas horas, o mesmo acontecendo com as reposições que foram feitas em caráter de urgência. Alfaiates e costureiras tiveram que contratar mais empregados, para darem conta de tantos pedidos, muitas encomendas foram recusadas e foram transferidas para profissionais dos municípios vizinhos. Várias senhoras de bem, da sociedade local, prontificaram-se a ajudar na confecção dos doces e salgados para a festa, mas, mesmo assim, foi indispensável o chamamento de inúmeras cozinheiras, doceiras, auxiliares de cozinha e uma garota de programa para o noivo. Pronto, novamente a inveja entrava em cena, fazendo com que várias daquelas damas jurassem de morte o dono do cartório.
Os garçons foram contratados nas melhores casas da capital, após minuciosos exames de seus currículos. À medida que o grande evento se aproximava, as vendas no comércio cresciam ainda mais. Nunca, a cidade lucrara tanto. O alvoroço financeiro se estendera por toda a região e até o comércio das outras cidades teve que recrutar trabalhadores para atender a demanda. Os mais afortunados viajavam até a capital em busca de presentes ou de um traje único para a cerimônia.
Mas, um dia, antes daquele que seria o momento inesquecível na cidade, ocorreu a grande tragédia. O clube social pegou fogo. A população em prantos tentou de todas as maneiras ajudar os bombeiros, mas de nada adiantou. O prédio foi totalmente destruído. As beatas não tinham dúvida. Aquilo havia sido um atentado terrorista, segundo o pároco, sem precedentes na história da humanidade. Uma multidão correu à casa de seu Jurandir, atrás de justiça, mas, ele, apesar de ser inocente, com medo, fugiu com a moça lá da roça para o Rio de Janeiro. À esposa deixou apenas um bilhete, dizendo que há males que vêm para bem.
À noite, um temporal terminou com que o fogo poupara. As paredes ruíram, perante os rostos tristes da população. Mas, apesar do abatimento, arregaçaram as mangas e foram à luta. Ninguém na cidade dormiu. A prefeitura cedeu um velho galpão que foi transformado em salão de festas. Os restaurantes emprestaram mesas e cadeiras. Homens trabalharam de graça na pintura e na melhoria do velho depósito, as mulheres faziam a faxina. Eram tantos os voluntários, que lembravam aqueles filmes, onde multidões de escravos construíam as pirâmides, comparava o Josias da farmácia. O prefeito, para dar exemplo, despachou em seu gabinete pela manhã, ao som do Danúbio Azul. Sua felicidade era tamanha que ao ritmo da valsa assinou diversos documentos sem ler, inclusive o de sua renúncia, proposta por um vereador da oposição. Perto do meio-dia, o prédio reformado tinha um aspecto condizente com o episódio histórico, que aconteceria ali. Só o que ainda podia atrapalhar era a intensa chuva que não cessava, apesar de seu Olinto ter chamado um pajé para que estancasse aquele aguaceiro, medida aprovada por todos os partidos da Câmara.
A euforia pela vitória contra as adversidades tomou conta da pequena São José da Campanha. A orquestra ensaiava tanto a marcha nupcial, que ela parecia o hino do município. Crianças brincavam de casamento nas calçadas. Foguetes eram lançados, lembrando a conquista da copa do mundo de futebol. Um estrondo maior assustou os moradores. O paiol onde estava depositada parte dos fogos explodiu, mas não houve vítimas. Por isso, ninguém se importou da velha construção ter ido pelos ares.
A igreja decorada com flores, como nunca se vira, a orquestra e o coro da capital, jornalistas, socialites e autoridades estaduais, e até a imprensa do centro do país, fazendo reportagens que seriam exibidas em rede nacional, confirmaram o que a população já sabia: aquele era o evento do século para a pequena São José da Campanha. Quando a noiva surgiu à porta do templo, as senhoras se emocionaram, como se fosse ela uma de suas filhas. Os homens e até as crianças demonstraram em seus sorrisos e olhos lacrimejantes o orgulho que a moradora lhes proporcionava e padre Jacinto fez um longo e emocionado discurso enaltecendo as virtudes e qualidades da moça, que só encontravam parâmetros em uma santa.
O baile foi uma festa inesquecível para a comunidade. Primeiro, pela homenagem à filha mais querida e ilustre da cidade, segundo, porque era uma comemoração à vitória que a união de todos proporcionara.
O casal teve dificuldades em sair da festa, inúmeros eram os pedidos para fotos ao lado dos noivos. Deputados, prefeitos, vereadores, empresários, familiares, enfim, todos queriam uma lembrança dos cônjuges, que a muito custo, partiram para a noite de núpcias, na casa que ganharam como presente da família do noivo.
No salão, os convidados dançavam, bebiam, se divertiam trocando impressões e comentários de como estariam os pombinhos, a sós. Se pudessem ter observado a noite de Eliete e o marido, saberiam que tudo transcorreu como ela sempre sonhara, com carinho, amor e prazer.
Na manhã seguinte, Eliete acordou estranhando o silêncio, apesar do adiantado da hora. Era quase meio-dia. Nem os passarinhos cantavam. Lembrou que a população dormia embriagada pela alegria do evento. Sentiu prazer ao lembrar da felicidade que proporcionara a todas aquelas pessoas. Apreciou o corpo nu deitado ao seu lado, enquanto se espreguiçava. Levantou-se e se dirigiu à cozinha onde abriu o armário e pegou uma faca pontuda, passando o dedo delicadamente para verificar seu fio. Depois, retornou ao quarto e deferiu diversas estocadas no marido. Ouvia seus gemidos e continuava a lhe golpear, sem dó nem piedade. Seu ataque foi tão certeiro que impediu qualquer tentativa de defesa por parte do esposo. Uma última perfuração no pescoço foi o golpe de misericórdia, fazendo com que um jato de sangue jorrasse com tamanha força, que sujou a roupa, os braços e até o rosto de Eliete.
A assassina foi ao banheiro, tomou banho, depois se dirigiu ao quarto onde estavam os dois armários que a acompanharam a vida inteira, e que foram os primeiros móveis a entrar na casa nova. Abriu em par as portas daquele que ninguém sabia o que continha, revelando seu interior repleto de roupas pretas. Colocou um vestido e uma blusa, calçou meias e sapatos, e caminhou até a cozinha. Lavou a faca que utilizara para matar o marido e cortou com ela um pedaço de salame, que colocou no meio de duas fatias de pão com queijo e manteiga. Antes de dar a primeira mordida, olhou em direção ao quarto onde jazia o corpo ensangüentado. Um sorriso de satisfação brotou em sua face ao pensar que havia realizado o seu segundo sonho, o de se tornar viúva.