Conto de Natal

Todo mês de dezembro era um clima de festa na casa de Lourdes. As luzes de Natal iluminavam a sala de estar em uma grande árvore cercada de pequenas lembranças, e não eram presentes, eram lembranças mesmo. Papéis grandes e pequeninos que denunciavam a idade de quem neles escrevia, quanto maior o papel, mais velho o autor. A mãe de Lourdes fazia questão de reunir a família para lembrar os momentos bons, que ela chamava de momentos natalinos, e momentos ruins da vida de cada um. Escritos em papéis, eram pendurados na árvore para entregarem ao Deus menino. Os momentos natalinos eram agradecidos e, para os momentos ruins havia a promessa de novos tempos.

Ao passar dos anos, alguns papéis cresciam, outros diminuíam. E, durante algum tempo, aquilo intrigou Lourdes, a filha do meio. Nascida e criada entre dois irmãos homens, ela sentiu, na entrada da adolescência uma solidão de sentimentos, um caldeirão de dúvidas que a impediu de escrever com facilidade sobre agradecimentos e promessas. O papel dela tinha sempre o mesmo tamanho.

Cansou, talvez, do exercício que na infância aguçava a curiosidade e fazia a diversão da ceia, pois quem se sentia à vontade, poderia ler os bilhetes da árvore em voz alta, para compartilhar, e em seguida, eram colocados em uma caixinha, de preferência colorida, para a próxima leva.

Hoje, é no mínimo curioso para Lourdes abrir a caixa e rever seus pensamentos de criança, após trinta anos. Seus avós e sua mãe morreram pouco depois do casamento do irmão mais velho. A família que deveria estar crescendo, diminuíu muito cedo. A prática das lembranças natalinas desapareceu junto com a mãe.

A família de Lourdes, agora, era o marido e os filhos, que para o desgosto dela jamais toparam a brincadeira de Natal. Não encontrava os irmãos com freqüência, - males da modernidade, dizia ela, - as pessoas não têm mais tempo para o afeto, para a família. Reclamava sempre para o pai, que este ano fez um pedido inusitado.

Com saúde frágil, o velho pai pedira aos filhos um Natal em família, como nos tempos da infância. E avisou: “levem suas caixinhas coloridas”!

Vinte e quatro de dezembro, inexplicavelmente, a ansiedade tomava conta do coração de Lourdes e dos irmãos. No reencontro, a falta da mãe e dos avós acentuaram a saudade da infância. Estava quase tudo como antes, a casa, a ceia, os enfeites de Natal...menos a árvore. Estava vazia, repleta de pequenas luzes, mas sem lembranças.

O pai, numa vitalidade há muito não vista, adentrou a sala com pequenas caixinhas. Os irmãos se entreolharam e constrangidos perceberam que estavam de mãos vazias, esqueceram suas caixinhas.

- Esqueceram não! Exclamou, entusiasmado o pai. - Eu as resgatei no último Natal em família. Vocês estavam tão desinteressados no evento que eu resolvi passar a mão nos seus pensamentos. Já que, naquele momento, vocês já se encontravam distantes de mim. Vamos retomar de onde paramos?

Ao abrir as caixinhas, risos e choros, gargalhadas e lamentos, e muita, muita ‘zuação’. "Como é que é? Tio Paulo e tio Fernando agradeceram o primeiro beijo na vizinha?! Mas quem foi o primeiro, afinal?!, “Ih, a vizinha, hein! Eu conheço?! Caçoavam os adolescentes.

Após alguns minutos, o pai para e observa filhos e netos numa conversa animada, feliz.

Para Paulo, por exemplo, era a primeira vez que falava tão intimamente sobre sua vida com os filhos, que, naquele momento, podiam, literalmente, tocar o pai com os olhos e o coração.

Fernando era um caldeirão de emoções, ria, chorava e jurava amor eterno a todos, como uma criança que jura à mãe não fazer mais arte.

Lourdes estava quieta. Nas mãos, um pequeno papel e o último pedido de Natal feito nas ceias em família: “Não quero agradecer nem pedir. Odeio essas lembrancinhas natalinas, e espero que meus filhos odeiem também!”. Os filhos entraram na frase, porque após as reclamações da jovem adolescente, a mãe sempre retrucava: “Quando você tiver filhos, vai dar valor a esses momentos”.

- Nossa! Pensou alto Lourdes, e todos se concentraram nela.

- Parece que acabei de ouvir a mamãe.

A emoção não deixou que continuasse. E a única palavra que conseguiu pronunciar foi perdão.

E o pedido foi para si mesma. A mulher de hoje precisava perdoar a menina que um dia odiou o mundo, a família, o Natal.

Lourdes nunca foi infeliz, ao contrário, conquistou sucesso profissional, amou muito e foi muito amada, casou-se e teve filhos. Mas os natais a incomodavam, chorava, às vezes. Logo depois, no alvoroço dos fogos de ano novo, tudo se dissipava novamente, e os compromissos, a rotina profissional e familiar a afastavam mais uma vez do afeto já perdido.

Aquela frase arrogante escrita num papel amassado era a resposta que ela nem sabia que buscava. Agradeceu ao pai pela oportunidade e propôs a todos escreverem novos papéis com o que de bom e ruim acontecera no ano e os desejos para o próximo. As caixinhas foram bastante disputadas, mas por direito adquirido e hierarquia imposta ficaram com os antigos donos, que queriam e precisavam reviver a infância que tiveram e compartilhá-la com os filhos, que adoraram a brincadeira.

A partir dali, a árvore cresceu, e os bilhetinhos pendurados se multiplicaram nos lares de Lourdes, Paulo, Fernando...redescobriram e vivem o Natal, a cada dia, dentro de si mesmos.

Feliz Natal!