Mártir?

Eles estão lá em cima. Daqui de baixo eu sinto o meu corpo suar e me espanto com o tremor de minhas pernas. Aqui caminham ratos, baratas e diversos insetos. Todos eles passam por mim assustados de verem um ser estranho em seu habitat, os ratos sentem de longe o meu batimento cardíaco e fogem de mim, pois pela sua audição eles detectam que eu estou em alerta. Mas se eles soubessem o pavor e o asco que sinto por eles, viriam matar sua fome em minhas carnes e, eu nada mais poderia fazer a não ser me debater até a morte.

Lá em cima escuto os passos dos homens que estão a minha espreita. Posso escutar alguns manusear suas armas e outros até atiram para alguma direção como se estivessem sedentos de sangue ou quisessem treinar seus alvos. Aqui em baixo as águas sujas desse esgoto correm rumo a um rio levando detritos de diversos lugares. As águas sujas me banham os pés descalços, e eu estremeço de medo só de pensar que posso ser mordido por algum inseto.

Que ironia, aqui está inundado de água e eu estou morrendo de sede. Existem momentos de nossas vidas em que não damos devido valor a coisas de suma importância como um copo d água ou uma brisa de ar puro. Nós seres humanos nunca estamos satisfeitos com nossas vidas e sempre estamos reclamando de tudo o que nos acontece; mas se eu escapar daqui (coisa que acho muito difícil) serei mais atento a certas coisas, serei mais sensível a tudo o que me rodeia.

Apesar de tudo o que estou passando nesse momento não sei se me arrependo do que fiz. Tirar a vida de um ser humano é uma coisa terrível eu sei. Uma vida vale mais do que o mundo inteiro, mesmo sendo a vida de um crápula e, apesar de ser crápula é um ser humano; mas eu não consigo me arrepender do que fiz, apenas sinto muito pelas coisas agradáveis que perdi na vida, pelas dificuldades que eu criei em meu caminho devido a medos e preconceitos que cultivei.

Medo? Se eu disser que não o sinto agora estarei mentindo. Esse aliado e ás vezes inimigo da espécie humana me acompanha neste momento também. O que seríamos de nós se não fosse o medo? O medo através dos séculos cultivou a raça humana e a fez prosperar; mas ao mesmo tempo a aprisionou e a fez sua escrava. Oh quão bom seria a moderação, esse nome que a humanidade não conhece na prática.

Neste momento olho minha arma atônito e me espanto com a situação em que me encontro. Nunca usei uma arma para tirar a vida de alguém, essa foi a primeira e última vez, mesmo que esses homens desçam e me achem aqui eu não revidarei, pois o que tinha em mente eu já cumpri. Não sou um assassino sádico, matei por uma causa e não matarei mais nem um ser vivo isso eu prometo a mim.

Gostaria de por um momento entender a vida. O que é essa enorme confusão em que vivemos? O porquê de todas essas tormentas? Por que não procuramos a simplicidade da vida? O viver um dia após o outro com o que nos basta para viver. Apenas quando estamos à beira da morte é que nos damos conta de que a vida seria melhor se vivida de forma diferente; e ai é muito tarde. Eu dei minha vida por uma causa nobre, mas sei que a mídia inverterá o caso e serei taxado como um psicopata que agiu de forma errada diante de uma pressão interior; psicanalistas para forjarem esse diagnóstico não faltarão.

Não tenho a intenção de ser o grande mártir, nem de ditar o que os oprimidos devem fazer, eu apenas fiz o que minha consciência mandou e me sinto livre apesar de tudo. Estou escondido e preso a esse lugar horrível, mas sei que minha consciência está livre apesar de saber que meu corpo em breve estará aniquilado. O que importa é que ninguém pode prender ou matar meus pensamentos eles são e serão para sempre livres.

La em cima eu escuto o barulho de carros e caminhões. Estou em um lugar que não tem outra saída, o lugar por onde entrei; tenho certeza de que eles sabem que estou aqui, e posso até sentir a presença de um homem lá em cima com uma arma engatilhada só esperando que o “rato” saia da toca. Eles ainda não entraram aqui para procurar pelo fato de saberem que aqui mão tem saída, estão economizando esforços. Que ironia é a vida: agir como homem e morrer como um rato, mas fazer o que? Nem sempre a vida é justa.

Tudo o que queria nesse momento é abraçar meu filho e dizer a ele o quanto o amo. Se é que isso tem como se expressar com palavras. Gostaria de dizer que ele é o que me fez viver e que é por ele que cometi esse sacrifício. Gostaria de poder tê-lo em meus braços e sentir seu cheiro e sua pele pela última vez. Que coisa engraçada; chega um momento em nossas vidas que não vivemos mais para nós mesmos e sim para esses pequenos seres que nos dominam de uma forma maravilhosa, como é isso de adorarmos viver em prol de nossos filhos?

Quanto tempo vai demorar até que esses homens me achem? Será que eles estão apenas a ordem para entrarem e me liquidarem? Estou exausto e começo sentir muito sono; que bom seria se eles entrassem comigo dormindo e acabassem com essa história de uma vez sem que eu sentisse dor. Mas não, com certeza eles me alimentarão e me farão voltar minha plena consciência e vigor físico para me torturarem e tentarem achar um mandante para esse crime. Eles não acreditarão que um homem simples do povo canalizou toda a sua revolta em quem realmente merecia, eles menosprezam o intelecto das pessoas simples não acreditando que a verdade um dia virá á tona e que a justiça será feita nem que seja á mãos próprias, já que as dos tribunais não existem.

Neste momento escuto passos de homens descendo pelo esgoto e vindo até aqui. Sei que chegou minha hora, eles me matarão ou me levarão para interrogatório? Não sei só sei que se tivesse que fazer tudo novamente eu o faria. Não hesitaria em estraçalhar a cabeça dele novamente. Em suma: para que achar esse fragmento saiba que estou com medo, porém feliz não fiz tudo o que deveria na vida, mas na maioria das coisas fiz o que podia e minha consciência não pode me acusar. Neste momento não sei que tipo de sensação percorre meu corpo, mas sei que tudo o que podia fazer para melhorar o meu mundo e o mundo dos que me rodeiam.

Se esse papel não for levado pelas águas ou destruído pelos insetos é que você o achou passe-o a frente e junte ás outras cartas que deixei que eles poderão ser úteis para algo.

23:06

ronaldo moraes
Enviado por ronaldo moraes em 10/12/2009
Reeditado em 28/01/2018
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