Cotidiano

A terrível dualidade, dividindo a vida em pétalas, emanando um furtum de cana pisada, de areia da praia, de corpos que precisam de cama, de febre, de pasta de dente.

Por um lado, a escritora, a leitora voraz, a mulher que conhecia gestos e frases, quadros famosos.

Do outro a lavadeira, a cozinheira, a passadeira.

As coisas se ordenando na sua frente: contas, pedidos, anúncios abruptos. A mal contida força, que era uma fraqueza real; as solicitações mal recebidas, o atendimento forçado das necessidades alheias, humanas, animais.

E o sonho, por que sonhos haviam; a maioria mortos,é verdade, mas sempre persistentes na ânsia infinita de existir. Vira o resultado de uma carregadora de sonhos. Os sonhos zumbís, mortos-vivos, voltando, fedendo, ao lugar onde eram flores perfumadas.

E o medo? Bem, ele era quase um amigo, de tão conhecido e íntimo. Vivia abrigado no peito dela, aconchegado como um caroço maligno que não a matava de pronto, precisava do sofrimento para sobreviver.

Maldizia a cabeça que nunca parava de pensar e que lhe dava visão clara do destino. Lembrava do filme Crull, onde os cíclopes ambiciosos só conseguiram por clarividência, em troca do olho, a visão da própria morte.

O vento a desesperava. Mais chão para varrer somente, mais lixo para remover apenas. Que adiantava o vento se ele não varria as grades da prisão?

Quisera ter asas, mas o medo ria dela. Nada de asas, voar faz medo.

O calor escaldante do sol banhava o mundo e deixava ainda mais agreste a paisagem limitada dos seus dias; ansiava pela chuva como por um amante. Mas, ela não vinha.

Os punhos fechados recebiam o carinho do vento maldito, doendo por força de dois trabalhos tão díspares: varrer a casa, empunhar livros.

E a realidade? Temia, a cada visita importuna, essa mulher velha e feia, nua e claudicante, que ria com a boca sem dentes e dizia, num sussurro cruel: És su vida, és su querer.

(A realidade fala espanhol, como Deus.)