Uma singela estréia: Ventania
“Velhice já é sinal de inutilidade, pobreza também. Os dois juntos, talvez melhor morrer." R. PEIXOTO, JULIANA.
A Juliana, um prosseguimento de seu texto.
1958.
O enregelo trazido pela brisa invernal balouçava a cortina púrpura. A chama pálida do fogão de lenha refletia em seus óculos de garrafa de refrigerante. Sentado, imóvel, no velho tamborete recoberto de retalhos para melhor acomodar sua anca infinitamente mortal, cansada, queimava o último maço de cigarros que lhe restava. O cachorro que assistia-lhe, nesse tedioso ritual, ergueu as orelhas, saiu com o rabo eriçado. Os lábios secos, o frio invadindo seus ossos esburacados pelo tempo, pela inutilidade, as tosses escarradas do negrume que manchava seus falhos pulmões, detiveram seu olhar de altivez e honradez ao único que ainda lhe suportava.
A colcha puída pelos únicos seres que divertem-se com o antigo, o descorado, o finito, enrolava-o e tremia com os incessantes calafrios advindos dos músculos atrofiados do velho. A chaleira assobiou, procurou, com as pontas dos dedos do pé, os chinelos de pano, levantou-se, a coluna estralou em cinco locais divergentes, um leve sorriso sobreveio-lhe à face enrugada. Pegou o pires e a xícara da portinha ao alcance dum criançola, colocou as peças de porcelana sobre a mesa etérea, suas mãos tremulantes externavam uma saúde frágil, os latidos agudos do cachorro surrado pela poeira da região detiveram o olhar frio e cálido do velho na direção do irritante som.
Cuido que o último latido foi o mais agudo e melancólico, o velho apertou os seus dedos contra a correia dos chinelos e foi ao pé do silencioso animal. Trôpego, caminhava em direção do som que ainda percorria-lhe o tímpano, segurou o coração estafado com seus dedos enrugados, observou os buracos de bala que atravessara o seu já não mais companheiro, buscou o impiedoso ceifador com os olhos, estufou o tórax em ridícula pose de que algo podia, pegou o animal, as lágrimas escorriam pela sua face.
Trancou a porta da cozinha ao passar, o medo tinia em sua mente, seus parcos neurônios e suas sinapses embaralhadas comprometiam as decisões racionais, pegou de dentro do baú carcomido pelos cupins famintos um lençol estampado de rosas do campo, o choro intensificara-se, o catarro escapava-lhe pelas narinas, ao passar pela copa esbarrou no tamborete ainda quente, e bateu com o rosto no chão de madeira de lei, sentia o sangue escorrer pelo seu nariz juntamente com a mucosa escura de seu corpo, a dor alucinante avisava-lhe que quebrara o nariz, as pernas doíam, quiçá partidas em três pedaços, como descobririam os peritos dias mais tarde, o lençol pintava-se de vermelho, as mãos não suportavam o peso do corpo, não podia levantar-se.
Os pássaros cantarolavam a marcha nupcial, a noiva ansiosa corria em direção ao altar, o noivo riu-se da própria felicidade, dois corpos entrelaçavam-se meio aos lençóis, os corpos delineados explodiam ao êxtase da apurada jovialidade, o sorriso do cambalear da criança ao buscar os braços da mãe, o casamento da mocinha, do fruto, a morte da sua amada, a solidão, a rejeição da filha, o desconhecimento dos netos, as lembranças rodavam como se estivessem gravadas em uma fita cassete, anos felizes, passados.
Olhava-se, aprendera a acostumar-se à calmaria dos dias, ao bater cada vez mais raro de seu coração, aos tremores de seus membros, seu sexo murcho, pálido, com putinhas acalentando uma ânsia forçada de sua antiquada virilidade, aprendera a não esperar cartas de suas crias, malditas, habituara-se à visita repentina de pássaros pedindo-lhe uma noz, um gole de água, à secura da garganta, à vida vazia, infértil fim, aos livros empoeirados, ao companheiro último, que já não mais possuía, acostumara-se à velhice.
Habituando-se à velhice, começou a não importar-se com a morte, mas o medo, o medo não lhe saía da mente, alguém que tivera coragem de matar uma criaturinha inocente como seu cachorro, seria capaz de qualquer coisa, as janelas abertas, as cortinas batendo contra a noite, uma estranha sobra pousando sobre seu corpo, seus olhos cedendo à força de um sono, eterno.
Passos, denunciando a aproximação de alguém, um jovem com uma pistola às mãos, bateu à porta, queria saber se os dois latidos melancólicos que mais cedo ouvira eram causa das duas balas de chumbo que atirara aleatoriamente contra a ventania que atrapalhara o seu dia.
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