Ligação de engano
Ligação de engano
A vida que Tomás levava era muito simples, acordava muito cedo, tomava seu café da manhã e logo seguia o caminho para o trabalho num ônibus circular.
Certo dia, Tomás acordou cedo como sempre, foi à cozinha preparar o café e depois seguiu para o trabalho. Quando chegou ao trabalho, teve a notícia de que um de seus clientes estava com problema com um dos produtos que havia comprado: assentos sanitário.
- Mas esse assento não cabe no meu vaso sanitário! – dizia o cliente.
- Deixe-me ver. – pediu Tomás ao homem.
Tomás avaliou o assento sanitário, parecia tudo em ordem.
- Deve ser o modelo do assento que está causando problema, você trouxe o molde do seu vaso sanitário?
- Não.
- Então vem comigo, vou te mostrar os modelos de vaso sanitário que temos aqui na loja e você tenta reconhecer o que se parece com o da sua casa.
Os dois homens foram até um canto da loja onde havia uma enorme exposição de vasos sanitários, havia de todo tipo, pequenos, grandes, redondos, quadrados e triangulares. Tomás disse ao homem:
- Algum desses assentos parece com o do senhor?
O homem olhou para os assentos e depois olhou para Tomás.
- O senhor pode me dar licença? – disse o homem. – Não quero que o senhor invada a minha privacidade.
Tomás balançou a cabeça de cima a baixo bem lentamente, concordando com o homem e saiu para um canto. Resolveu esperar o cliente numa sessão diferente, o setor de telefonia. Havia poucas pessoas ali, só um funcionário da loja que trocava algumas etiquetas de preços nas gôndolas. Logo ele desapareceu de vista e Tomás perdeu seu tempo olhando os aparelhos telefônicos que estavam expostos. Eram de todos os tipos, com dígitos comuns, em formas de botão, com dígitos em forma de visor digital, alguns eram apenas fones de ouvido com microfone e outros eram estranhos, pareciam apenas uma caneta fina com espaço para falar e ouvir, mas um em especial chamou a atenção de Tomás, um telefone vermelho, com aparência muito antiga, os números de discagem eram daqueles que giravam. Tomás ficou um tempo admirando o telefone, pensando no por que haveria um telefone desses para vender ali se eles haviam saído de linha há muito tempo. Olhou pensativo para o telefone.
- Bem que eu podia ter um desses...
Tomás foi tirado de seu transe pelo cliente que ainda segurava o assento sanitário nas mãos.
- Eu acho que encontrei o vaso parecido com o que tenho em casa.
- Então me mostre.
- Não, eu quero privacidade.
- Mas como eu vou poder ajudar o senhor se eu não sei qual é o vaso sanitário que o senhor tem em casa?
O homem ficou pensativo e, depois de um tempo, decidiu levar Tomás até onde se encontrava um vaso sanitário retangular e grande.
Tomás não conseguiu segurar uma risada, o vaso sanitário que o homem lhe indicou era muito extravagante, mas nem foi o formato do vaso que fez ele rir, mas o assento que o homem havia escolhido no dia anterior para encaixar no seu vaso sanitário.
- Mas é claro que o senhor não iria conseguir encaixar esse assento no vaso sanitário do senhor, ele é redondo e o vaso que o senhor tem em casa é retangular, sem falar que é muito maior do que o assento que o senhor escolheu.
O cliente pareceu deveras ofendido com as palavras de Tomás, resmungou baixo e mudou de cara no mesmo instante.
- Então me mostre um assento que se encaixe no meu vaso sanitário! – falou o cliente secamente.
Tomás mostrou o assento ao homem, ele pegou um assento de uma cor quase verde florescente e foi até o caixa. Tomás ainda escutou o cliente dizer entre dentes:
- Eu vou denunciar esse funcionário para o gerente da loja, onde já se viu, além de querer saber da vida íntima das pessoas ainda faz gozação!
“É, o dia vai ser difícil”, pensou Tomás.
E foi mesmo, aquele não foi o único problema que Tomás teve com clientes no dia, teve um que teimava que queria um assento sanitário cinza, mas apontava toda hora para um azul e, quando Tomás aceitou que o azul era cinza, a pessoa virou para ele e teimou que ele o havia induzido a comprar o azul só porque era mais caro.
Por volta das seis horas da tarde, Tomás se livrou do último cliente e foi tirar o uniforme. Quando seguia para a saída da loja, passou no corredor em que estava o telefone vermelho. Parou novamente quase que hipnotizado, com os olhos namorando o telefone. Ele adorava tudo o que parecia antigo.
Ele abriu a carteira e viu quanto que tinha de dinheiro, não era muito, mas era o suficiente para comprar o telefone. Ele pegou o aparelho e o levou para o caixa.
- Uau, faz tempo que esse telefone está parado lá na prateleira – disse a garota que estava no caixa da loja , ninguém nunca quis comprar ele. Vou te dar o desconto de funcionário, está bem?
Tomás saiu contente da laja e não se preocupou com o caminho que ainda teria que percorrer até sua casa num ônibus lotado de pessoas exaustas com mais um dia de trabalho. Ficou olhando o telefone todo contente como uma criança que acabara de ganhar um brinquedo que queria muito.
Quando chegou em casa, Tomás tratou logo de substituir o telefone da sala pelo que acabara de comprar. Instalou o novo telefone numa mesinha perto do aparelho televisor, e lá deixou o aparelho na expectativa de que alguém ligasse e, assim, ele poderia testá-lo.
Foi para a cozinha, preparou o jantar, mas não aguentava esperar, hora ou outra corria para perto do telefone e o tirava do gancho para ver se funcionava, o telefone parecia em perfeito estado.
- Para quem eu posso ligar? – se perguntou Tomás, mas não lhe vinha ninguém na cabeça.
Deixou o telefone de lado e foi jantar.
Quando já ia deitar e acreditava que ninguém mais o ligaria naquele dia, escutou o som vindo da sala. O telefone tocava como um despertador antigo desengonçado, fazia o som de um sino que tocava descompassadamente. Tomás correu para atender o telefone antes que a pessoa desistisse de continuar chamando.
- Alô – disse ele.
- Jefersom? – perguntou a voz no outro lado do telefone.
- Não, aqui é Tomás.
- Ah, me desculpe, foi engano.
Desligou o telefone.
Tomás ficou feliz. Mesmo sendo uma ligação de engano, ele pode provar que o telefone funcionava e muito bem, por sinal. Ficou todo contente e foi se deitar com um sorriso no rosto.
No dia seguinte, Tomás chegou ainda mais tarde do trabalho e deu menos importância ao aparelho vermelho na sala. Já estava provado que funcionava e agora o via só como um adorno ao cômodo.
Novamente, quando ele ia dormir, o telefone tocou e Tomás correu a atendê-lo.
- Alô. – disse mais uma vez ele ao telefone vermelho.
- Alô, Tomás?
- Sim, quem é?
- Sou a pessoa que te ligou ontem, estava procurando Jefersom, acabei ligando para você por engano.
- Ah, sim.
- Eu gostaria de conversar um pouco com você.
- Sobre o quê?
- Sobre a sua vida.
Tomás soltou uma leve gargalhada e colocou a mão no gancho do telefone. Esqueceu logo do aparelho, pensou só no que queria aquele homem saber da sua vida. Tomás não era bobo, sabia que tinha muita gente que ligava fingindo ser engano só para descobrir dados da vida pessoal, para depois usar esses dados em fraudes ou assaltos.
Curioso, Tomás tirou a mão do gancho e escutou novamente, o homem ainda parecia estar do outro lado da linha. Ele escutou o silêncio na linha por um tempo.
- Tomás? – disse, enfim, a pessoa no outro lado da linha.
- O que você quer?!
- Quero saber um pouco sobre a sua vida.
- O que você quer?! Quer saber os meus dados para poder me roubar, é isso?!
- Não, só quero conversar.
Tomás foi impaciente e desligou novamente o telefone, dessa vez batendo o fone com força no gancho.
Foi se deitar, estava cansado e teria outro longo dia de trabalho no dia seguinte. Mas quem disse que ele conseguiria dormir? Não parava de pensar no telefonema que recebera. Girou de um lado para o outro na cama até que não aguentou mais e voltou à sala. Tirou o telefone do gancho e o levou ao ouvido. O silêncio dominava.
- Tomás?
Assustou-se o homem sentado na poltrona da sala.
- Você ainda está aí? – perguntou assustado Tomás.
- Sim, quem liga é quem pode realmente desligar a ligação.
- Desliga essa porcaria de telefone! Eu vou ligar para a polícia! – gritou Tomás e bateu com força o fone no gancho. Um cachorro começou a latir na rua ao lado de fora da casa.
Ele foi à cozinha, não conseguiria mais dormir. Andou de um lado para o outro pensativo, preocupado. “O que é que aquele homem quer comigo?”, pensou enquanto fervia água para um chá, “Se ele não desligar o telefone eu nem ao menos poderei ligar para a polícia!”.
Não deu outra e ele foi novamente para o telefone.
- Você ainda está ai?! – perguntou Tomás com rispidez.
- Estou sim.
Mais uma vez desligou o aparelho telefônico.
Quando o sol estava raiando, Tomás foi se preparar par ir ao trabalho. Estava exausto por não ter dormido a noite.
- Eu não vou mais atender esse telefone! Que desgraça a minha ter comprado ele ontem!
No entanto, antes de sair para o trabalho foi verificar se o homem ainda estava na linha. “Ele não pode ter ficado a noite toda do outro lado me esperando”, pensou. Quando levou mais uma vez o fone ao ouvido, escutou:
- Eu vou contar até três.
Instantaneamente depois das palavras, o rosto de Tomás ficou purpura e seu olhar ficou o infinito. Ele se sentou devagar na poltrona da sala e lá ficou com o telefone ao ouvido.
- Agora você vai sentir uma vontade enorme de me obedecer – continuou a voz ao telefone. – seus olhos estão pesados, você se sente pesado, mas sabe que é feito de pedra como uma estatua e não deixará o corpo mexer um só centímetro. Agora teus olhos parecerão duas esferas de vidro e não se mexerão mais – fez-se um silêncio momentâneo do outro lado da linha. – Agora, quando eu contar até três, você voltará ao normal. Um.
Repentinamente escutou-se uma outra voz do outro lado do telefone:
- O que você está fazendo?! – era uma voz de mulher e parecia muito brava.
E, repentinamente, escutou-se uma forte ruído seco do outro lado da linha e a ligação caiu.
Tomás ficou paralisado segurando o fone ao ouvido. O som de ligação cortada ressoava constante em seu tímpano. Ele não se mexeu. Não moveu um único músculo. O que será que a pessoa do outro lado da linha pretendia fazer? Isso ninguém sabe, mas se, em algum momento, desejou tirá-lo do transe, nunca mais conseguiria, pois o telefone fora do gancho, na mão de Tomás, não permitiria mais novas ligações.
Ninguém descobriu o homem parado na poltrona com o telefone na mão. No trabalho, não ligaram para as suas faltas, acreditaram apenas que ele já estava de saco cheio de vender assentos sanitários e que resolveu não aparecer mais por lá. E ninguém foi atrás dele.
Ele vegetou imóvel por muito tempo, a vida esvaiu e depois ele existiu, ainda, por muito mais tempo, feito uma estátua de músculos eternizada. Tomás ficou imóvel naquela sala até que uma população muito mais evoluída o encontrou durante uma escavação para entender o estilo de vida dos antigos moradores do planeta. Tomás virou atração e todos descobriram, assim, o modo como os antigos se comunicavam.
Rafael Marchesin
http://bardorafa.wordpress.com