"O último verão"
(Sugestão de música para ouvir durante o conto: “Claude Debussy – Claire de Lune” - http://www.youtube.com/watch?v=N3iORDe7Mxw)
Era manhã de sexta, estávamos em pleno verão, o dia começara abafado como era propício para a época, a fila do banco desdobrava-se em voltas e mais voltas regularmente “arrumadas” pelas “prestativas” assistentes que iam de pessoa por pessoa preenchendo depósitos, cheques, facilitando assim o atendimento no caixa.
O ar condicionado parecia não “dar conta” de tanta gente e ouvia-se o burburinho dos clientes a reclamar.
Cansada e tendo os pés doloridos, mal conseguia equilibrar-se em pé, e o calor sufocante tolhia-lhe a respiração.
Resolveu abanar-se com o contrato que estava a segurar, pois, o suor escorria pelo colo atravessando a discreta blusa desbotada e sem graça que a deixava nada atraente, muito menos feliz.
Essa mesma blusa fazia par com a calça folgada e de cor forte do uniforme que ela se via obrigada a usar dia após dia.
Apesar do aparente cansaço e desconforto estampado em seu rosto por conta das protuberantes olheiras, era observada por um belo rapaz da “terceira volta” da fila. Alto, cabelos escuros, pele clara, ombros largos e dotado de um olhar esverdeado cativante, levemente escondido atrás das lentes.
Contorcia-se todo na tentativa de não perdê-la de vista, e nem sabia o porque daquele súbito interesse, já que num primeiro olhar, não se podia ver nada de interessante.
Talvez fosse o ar desprotegido, ou sua notável palidez, ficou a pensar, talvez o tipo físico, lânguido, miúdo, frágil. — Quase invisível! Disse para si mesmo baixinho, em meio a um meigo, porém discreto sorriso.
Tinha as mãos enfiadas nos bolsos da calça jeans surrada, e, enquanto descrevia em seu íntimo a pequena menina, balançava-se para lá e para cá, parecendo que algo lhe incomodava.
Realmente, aquele súbito interesse pela moça sem graça da fila do banco, confundia-lhe a mente. Nunca antes, pelo menos não que tivesse lembrança, havia sido tomado por tão estranho sentimento, não queria e nem podia perdê-la, tornou-se para ele uma obsessão, pelo menos era naquele momento.
Sentindo-se sufocada abriu cuidadosamente o primeiro botão da blusa, o que deixou o colo a mostra enquanto soprava levemente roupa adentro.
Aquilo não foi suficiente para atenuar o calor que lhe assolava, sentiu as pernas bambearem. Percebendo que algo estava errado retirou-se rapidamente da fila a procura de um banheiro o que encontrou no fundo da agência.
Ninguém notou o mal estar dela, muito menos seu admirador, pois, havia se distraído momentos antes com um saquinho de moedas que, escapando da mão de uma jovem senhora, espalhou-se no chão.
Ao se dar conta, após ajudar a moça a apanhar as moedas, ela, a menina sem graça da fila, não estava mais lá. Desesperou-se, pediu à moça para guardar o lugar e foi até a porta giratória tentando enxergar fora da agência e nada, ela havia sumido, evaporado.
Naquela noite em casa ficou a pensar na menina, no seu olhar assustado, na boca carnuda, que deveria dar um ótimo sorriso, pensou ele rindo de si mesmo e de sua insana paixão súbita por uma completa desconhecida.
— E ainda por cima sem graça! Gritou sozinho no apartamento fazendo o som ecoar pelos corredores escuros.
— Vou escrever algo sobre isso, com certeza, e vai ser agora!
Ligou o computador e rascunhou alguns versos, depois de algumas horas sorriu triunfante ao ler sua obra de arte, ficara bom afinal, realmente ficara.
Sentindo o sono chegar retirou os óculos que colocou gentilmente sobre a escrivaninha e recolheu-se, ainda a pensar na menina.
* * *
Acordara cedo naquele feriado, o dia estava convidativo e anunciava muito calor.
Entrou na cozinha vestindo apenas a calça do pijama xadrez e um chinelo velho, afagou o cachorro com carinho o que ele retribuiu com uma bela lambida.
— Ah moleque! Vem cá!
Tomaram café, ele e o cachorro, e aprontou-se para sair, iria à praia, como costumava fazer nos finais de semana e feriados, para tentar refazer-se da exaustiva rotina a que era submetido todos os dias na redação de uma importante revista da cidade onde era colunista.
Pegou short, chinelo, as tralhas de praia, o livro que estava lendo no momento e saiu.
Arrumou-se debaixo do guarda sol, ajeitou os óculos e espichou-se na cadeira relaxando enquanto lia. Era tudo que ele queria naquele feriado.— Ah que delícia! Já estava completamente absorto na sua leitura, quando algo lhe tirou a concentração.
Ela vinha com velocidade, enfiada num singelo biquíni de bolinhas com os cabelos emaranhados pelo vento, estampava um largo sorriso e era perseguida por uma corja de meninos a brincar.
—Vem, corre! Gritava. – Deixa de ser mole! Assim vocês não me pegam! Nhenhenhenhe... E ria-se toda. Parecia extremamente satisfeita.
Era estranho e ao mesmo tempo engraçado, ver a moça feita brincando como criança, enquanto as outras, pensou ele, desdobravam-se de preocupação com seu corpo e bronzeado, tentando a todo custo chamar a atenção de algum possível pretendente.
Não conseguia tirar os olhos dela, aquele rosto parecia-lhe familiar, mas não lembrava de onde a conhecia.
Não se importou de início, já que a cena prendeu-lhe a atenção e acompanhava tudo com um estranho contentamento.
— Agora chega de correr, vamos fazer um castelinho!
— Oba!! Gritou a molecada. Acomodaram-se na areia fofa e molhada e deram início ao projeto.
— Não! Não é assim. Ralhava com a molecada com ar de quem entendia do assunto.
Ele acompanhava tudo com vivo interesse e vez ou outra acometia-lhe a vontade de fazer parte da brincadeira.
— Agora chega! Não quero mais brincar estou cansada. Anunciou ela de pronto.Tinha as bochechas rosadas devido à exposição ao sol escaldante de quase meio dia.
— Ah! Mas já? Resmungaram os meninos.
— Já! Vou nadar um pouco, outro dia a gente brinca tá...,mas, foi legal! Gritou ela de dentro do mar mergulhando em seguida sem cerimônia.
O mesmo calor que lhe era conhecido, voltou a incomodá-la novamente, sentiu um aperto no peito, as pernas bambearam, antes que pudesse pedir ajuda, a visão turvou e ela desfaleceu.
Atirou o livro pra longe e correu em direção ao mar, nadou desesperadamente mergulhando à procura da menina que, a essa hora, já devia estar longe.
Agarrou-a com força e conseguiu arrastá-la até a areia.
Tentou reanimar a menina, uma, duas, três vezes e nada, desesperou-se, olhou para os curiosos que se aglomeravam em volta, foi quando ela tossiu e soltou a água que estava a lhe sufocar, ele sentiu um alivio e abraçou-a com força.
Depois de alguns minutos chegou a ambulância que levou-a ao hospital, acompanhado por ele.
* * *
Abriu os olhos devagar e reconheceu o local, era um velho amigo que ela obrigava-se a visitar com frequência nos últimos anos, olhou de lado, mas, não reconheceu o homem a lhe sorrir com preocupação.
— Que bom que você acordou! Estava preocupado menina...
— Oi! Disse ela com jeito de criança entre um sorriso dolorido. — Ai. Gemeu sem graça segurando o peito.
— Que foi, está sentindo alguma coisa? Onde dói?
— Ela sorriu marota como se já tivesse pleno entendimento do que estava acontecendo.
— Não é nada não, fica calmo, já estou acostumada.
— Acostumada a que? A se afogar? Perguntou atônito.
— Ah! Eu me afoguei?
— Sim! Eu te tirei do mar quase morta!
— Puxa! Respondeu espantada. — Não me lembro dessa parte, foi você quem me salvou? Uau! Obrigada então...é...
— Otávio.
— Obrigada Seu Otávio.
— Nada de senhor é só Otávio.
— Nome bonito. Disse corando e sorrindo, fechando os olhos em seguida. Ele sorriu também e assustou-se lembrando de onde a conhecia, sim era ela, a menina sem graça da fila do banco, mas estava tão diferente, tão feliz, tão linda...apesar do susto.
— Que foi? Por que essa cara de bobo?
— Menina....disse fingindo-se de bravo. Ela gargalhou. — Desculpa, mas, foi inevitável.
— O que? Tirar sarro na minha cara? Os dois gargalharam.
— Olha...vem cá...Sussurrou ela maquinando uma travessura. — Vamos sair daqui de fininho? Eu já estou bem e depois, eu não gosto muito desse lugar, sabe como é né?
— Hum. Disse ele pensativo. — Isso não me parece certo e se você tiver alguma reação?
— Ahh! Você fala como minha mãe! Olha...se você não me tirar daqui agora, eu vou sair correndo e você nunca mais vai me ver!
— Bom...vendo por esse ângulo eu fico sem alternativas não é? E sorriu.
- Vamos embora então, depressa, pegue suas coisas eu ajudo.
Ela pulou da maca, vestiu-se rapidamente e os dois saíram feito criminosos correndo pelos corredores.
— Viu!!! Não foi divertido? Perguntou ela entusiasmada já na calçada, do lado de fora do hospital.
— Foi ótimo!! Não me sentia assim há anos.
— Aqui! Meu carro, entre.Vou levá-la para casa.
Ele abriu a porta devagar e ela ficou ali, imóvel, olhando para o interior do carro, não sabia se corria ou entrava, esboçou alguns passos em sentido oposto e ele, possuído por um sentimento estranho, agarrou-a subitamente e a beijou, o que ela, depois de se refazer do susto, retribuiu.
— Não podia deixar você fugir menina, não de novo. Sussurrou enquanto afagava-lhe o rosto.
— De...de novo?
— Sim! E explicou-lhe a história do banco.
— Você é louco,Otávio? Mal me conhece...nem sabe meu nome! Olha...Entristeceu-se. — Eu não posso ficar! Não posso me envolver! Me deixe...
— Claro que pode! E deve! Não importa “o quanto” eu conheço de você, o que importa é que eu...eu...preciso que você fique comigo, olha, não sei dizer ao certo, mas, tem algo muito forte que me liga a você.
— Não! Disse enquanto se desvencilhava do abraço. — Você não entende!
— O que eu não entendo? Me explica então! Explodiu ele.
— Eu não posso! Mas de uma coisa eu sei,...eu preciso querer, entende? Não vou simplesmente me deixar levar...assim, dessa forma, seria uma irresponsabilidade! Gritou ela deixando as lágrimas escorrerem.
Ele levantou seu rosto com a mão e disse em tom meigo:
— Ei...não precisa ficar assim, eu não quero forçar nada, mas,...também não quero te perder, vamos fazer um trato. Vou te dar meu cartão, aí tem meu endereço, telefone,
e-mail, celular, e...quando você quiser, me liga, escreva, mande um e-mail, sinal de fumaça, qualquer coisa! E eu vou te encontrar, onde você estiver, certo?
— Promete? Perguntou angustiado. Hesitou um momento e ele pode ver a palidez do seu rosto iluminado pelas luzes do poste.
Ela sorriu por entre uma lágrima e disse baixinho:
— Prometo.
Agarrou o cartão e saiu correndo.
— Espere! Como é seu nome?
— Amália...Gritou de longe enquanto era engolida pela escuridão da noite.
— Amália....Suspirou triste, mas sentia que a veria novamente.
* * *
Ela tentava a todo custo pegar no sono, remexia-se na cama.
— Droga! Por que isso agora? Por que não posso ficar em paz!
— Triiimmmmm!!! O telefone gritou no criado mudo ao lado da cama de madeira escura. Sem dar por si já havia atendido.
— Amália? É você?
— É...é...sou eu...quem é? Já é tão tarde...
— Sou eu, a Júlia! Puxa menina onde você esteve?!? Deixei milhares de recados na sua secretária, você não entra mais no msn, que está acontecendo? Até fui aí outro dia, estou morrendo de preocupação!! Seu médico me ligou e sabe o que ele me disse?
— Hum...respondeu sem ânimo...— O que ele te disse, Júlia?
— Que você parou o tratamento!!! Ele me ligou porque não consegue te achar! Você está louca? Como pode parar assim com seus remédios?
— Júlia...Suspirou profundamente...— Você sabe melhor do que eu,...isso não tem mais jeito...tente pelo menos me entender...eu estou tentando simplesmente viver! Aproveitar o tempo que me resta da melhor forma possível!! Disse mostrando sinais de irritação.
Júlia ficou em silêncio do outro lado da linha....
— Eu te compreendo, Amália,...afinal, sou sua melhor amiga não é? E sorriu sem graça.
— Então...O que você pensa em fazer?
— O sítio...
— Que tem o sítio?
— Tá vazio ainda?
— Está, Amália, você sabe que eu não me ligo nessas coisas, é “rural” demais pra mim. (Risos)
— Sei...então, estava pensando em ir pra lá...você sabe, seria um bom lugar pra ficar agora...
— Você está tão triste, Amália,...eu te conheço, sei que certas coisas não te abalam...o que está acontecendo? Conta vai, sou sua amiga.
...
— Puxa, você me conhece mesmo hein. Tá certo, vou te contar,... vem aqui?!?
— Agora?
— Já!
— Tô indo! E saiu toda empolgada.
Conversaram a noite toda e Amália explicou para a amiga o motivo de tanta tristeza, desde o primeiro momento, quando o viu na fila do banco e notou seu interesse por ela, sim ela havia percebido e o sentimento foi recíproco.
— O que você acha que eu devo fazer Júlia, sinceramente,...acha que vale a pena? Agora? Nesse momento?
— Amiga...acho que o amor vale a pena, em qualquer momento! Vai fundo! Se permita! Você sempre foi tão...tão...diria cautelosa, reservada...está na hora de cometer umas loucuras!! E porque não agora?
Amália sorriu de contentamento.
— Sabe. Disse enterrando o rosto nas mãos. — você está certa...dia desses vou procurá-lo.
— Dia desses amiga!?! Convenhamos, mas, pode não haver “dia desses”, vai AGORA!!!
— Agora?!? Mas, mas...está chovendo...hesitou, mas logo tomou coragem:
— Ah! Dane-se a chuva!!! Vou até lá!!!
Pegou o cartão dele que estava em cima da mesa lateral, despediu-se da amiga e saiu feito uma doida varrida.
Estava sozinho no apartamento escuro, largado na poltrona da sala, sem ânimo e com os olhos vermelhos por passar a noite em claro. Vez ou outra olhava através da veneziana tentando enxergar qualquer sombra na rua molhada, mas nada, nem um sinal sequer.
Foi quando ouviu a campainha, estranhou a hora, mas atendeu.
— Quem é?
— Sou eu. Disse baixinho abafando o riso com a mão.
Ele não reconheceu a voz de imediato, mas um calafrio percorreu-lhe a espinha, só pode ser ela, pensou. Sem hesitar, abriu a porta e desceu os degraus desesperadamente, estava apenas de short e roupão, mas, foi assim mesmo.
Ao chegar à recepção mal pode conter a emoção, era ela, ali, na sua frente, na calçada do velho prédio de apartamentos, toda molhada de chuva e sorrindo, enquanto os pingos escorriam-lhe pela face.
Abriu o portão e correu ao seu encontro beijando-a, ali mesmo na chuva, sem pudor, nem reservas. Só o que importava naquele momento era o forte sentimento que os unia, um amor ingênuo, puro, verdadeiro.
Passaram o verão todo, juntos, visitaram lugares diferentes, foram à praia, divertiram-se à beça, não desgrudavam um segundo sequer, estavam completamente apaixonados.
* * *
Ela acordou cedo naquela manhã chuvosa de sábado, o dia estava melancolicamente cinza, não conseguira dormir a noite toda, mas, não pode dizer a ele, não agora, entendia que precisava ir, havia chegado a hora.
Foi até a cozinha, brincou com o cachorro deixando escapar uma lágrima que enxugou rapidamente. Sorriu ao ver a felicidade do animal tão inocente, despediu-se, trocou de roupa quietinha para não acordá-lo já que dormia profundamente.
Ficou imóvel no chão do quarto a observá-lo. Seu corpo esbelto, embrulhado no lençol branco deixando o peito e os braços fortes a mostra, faziam um contraste perfeito com a singeleza dos óculos, pensou sorrindo marota.
— Ainda está com os óculos...que bonitinho...retirou-os do seu rosto com jeitinho. Chegara exausto naquela noite, deitou e dormiu.
Afagou seus cabelos mais uma vez enquanto tentava decorar os traços do seu belo rosto.
— Vou te guardar pra sempre... Sussurrou baixinho no seu ouvido segurando para não chorar. Deixou um bilhete em cima da cama onde dizia que não tentasse encontrá-la e assim partiu.
* * *
Foram meses de desespero para ele, não conseguia concentrar-se no trabalho, nos estudos, em nada, a tristeza havia tomado conta de seu corpo, sentia-se mal, não se alimentava.
— Puxa cara, que fossa hein! Que ta acontecendo? Conta aí vai? Questionou o amigo no trabalho.
— Nada cara, não é nada...não tô a fim de falar sobre isso desculpa aí.
— Otávio!?! Gritou o colega da terceira mesa, telefone! É uma tal de... Júlia.
— Hummm...brincou o amigo da mesa ao lado com sarcasmo.
— Cala a boca! Nem sei quem é.
— Alô, disse ansioso, Amália?
— Não...Desapontou-se.
— É a Júlia, você não me conhece...sou...amiga da Amália.
— Amiga da Amália!?! Gritou ele desesperado. — Onde ela está? Fui a casa dela, deixei milhões de recados na secretária, procurei ela em tudo quanto foi lugar e nada! Ela simplesmente foi engolida pela terra!!! Meu Deus! Eu estou ficando louco!
— Calma Otávio, calma, precisamos nos ver...pode anotar o endereço?
— Claro.
— Não é na cidade...é fora,...longe, pode vir?
— Posso, onde fica? Anotou o endereço com precisão.
— É um sítio no interior...
— Eu encontro, pode deixar, olha, estou saindo daqui agora, daqui umas duas horas estarei aí.
— Combinado.
* * *
— Onde ela está? Disse zangado empurrando a porta com força e tomando a sala.
O lugar era pitoresco, casa antiga, estilo colonial pé direito alto e forrado de madeira grossa, os móveis escuros e robustos davam um ar melancólico ao ambiente.
— Ela não está mais aqui, respondeu Júlia com tristeza.
— Pra onde ela foi então? Diga?
— Sente-se, vou te contar tudo...quer um café?
— Não obrigada. Disse já sem paciência.
Júlia contou-lhe tudo sobre Amália, enquanto falava sua voz parecia soar longe aos ouvidos de Otávio e vez ou outra os sentidos sumiam.
— Você está se sentindo bem Otávio?
— Não! Gritou ele de desespero. — Como você quer que eu esteja me sentindo bem depois de tudo isso que você me disse? Por que? Por que ela não me contou?
— Tente entender o lado dela Otávio, era difícil pra ela explicar uma coisa dessas. Os dois estavam exaltados andando de um lado para outro na sala, fazendo o assoalho de madeira antigo, ranger.
— Entender? E eu? Como eu fico nessa história? E o que eu sentia? Não significou nada pra ela?
— Não diga uma coisa dessas, ela te amava! Gritou Júlia chorando. - Imagine como deveria ser horrível pra ela ter que dizer pra pessoa que ama que vai morrer!
Otávio ficou em silêncio, não sabia o que dizer, culpou-se por ser tão egoísta.
— Significou muito pra ela sim, Otávio, ela me disse que você foi a melhor coisa que aconteceu na vida dela, apesar de ter durado tão pouco.
Otávio chorou desconsolado. Júlia abraçou-o com força.
— Ela te amava, pode ter certeza disso...Olha! Espere, ela te deixou algo. Entrou por uma portinha que dava para a sala íntima, voltou logo em seguida com alguns manuscritos.
— Ela disse para lhe entregar isso e você saberia o que fazer.
Eram dois livros que ela havia escrito e um deles por terminar, Otávio entendeu o que tinha que fazer, alisou o papel onde podia-se ver sua letra redonda e bem feita e sorriu por dentro.
Seu coração parecia mais calmo afinal, pois, ainda podia manter pelo menos um pedacinho dela consigo, vivo em sua lembrança e quem sabe compartilhar isso com outros, tentaria publicar os livros, sim, tentaria.
Saiu triste agarrando os manuscritos contra o peito que ainda mantinha lá no fundo o perfume suave dela.
Olhou para trás mais uma vez e teve o delírio de vê-la acenando da entrada da velha porta de madeira com seu sorriso largo e brilhante de uma alegria contagiante.
Sorriu e não conseguiu conter o choro que brotou espontaneamente.
No mesmo instante um belo pássaro de peito amarelo iluminado pelo sol da manhã pousou num galho próximo e pôs-se a cantarolar com vigor.
Ele entendeu o que deveria fazer, precisava seguir em frente, viver a vida intensamente, cada pedacinho dela, era isso que ela tentou lhe dizer todo esse tempo, e ele faria isso por ela, com todo amor que ainda lhe restava.
E assim se foi, deixando o velho sítio que ficava cada vez mais distante a cada árvore que passava.