23 de Julho
23 DE JULHO*
*Fragmento do livro “Dias de exílio voluntário”, de 2009.
Newton Schner Jr.
Ainda trabalhava em minha composição "Traum und Schuld", quando recebi um telefonema – era minha mãe. "Depois você acha que sou eu a nervosa e neurótica, mas veja... Veja o que você está fazendo de errado! Eu procurava um financiamento para comprar seu carro. Faltava apenas a checagem do seu CPF e então... O que me foi dito? Seu CPF está cancelado, você não declarou imposto de renda este ano e ainda está com uma dívida em uma operadora. Se você não regularizar a situação, quando o dinheiro da Receita Federal cair em sua conta, ele automaticamente irá voltar para as mãos da justiça por causa dessas suas irregularidades. Você precisa estar atento para todas essas coisas; caso contrário, seus bens irão a leilão. Veja... Veja o quanto eu tenho gastado com todas essas documentações!". Não tive tempo de respondê-la, pois logo passou o telefone para o Ricardo. Eu realmente peco neste sentido. Existe em mim uma capacidade de manter-se tranqüilo. Isto é sinônimo de uma distração negativa, quando se corre o risco de perder bens, esquecer de pagar certas documentações e ser apagado, excluído, morto segundo a justiça, pois estou com o meu código de barras – CPF – inválido.
Ontem tive uma conversa bastante agradável com meu amigo Bruno. De início, ele brincou comigo em relação ao meu interesse crescente por religiões ameríndias. Ele deu indícios de que pretende voltar a compor, a tocar, mas sem qualquer envolvimento com bandas. "Antes eu me empolgava, criava músicas, dava idéias... Fiquei muito contente com a oportunidade que estava aparecendo de poder tocar na Europa. Mas, como nem tudo dependia de mim, a banda acabou se silenciando, os outros membros já nem faziam questão de correr atrás de gravadora, shows ou mesmo pensar em lançar um novo álbum", dizia ele. "O mais recomendado, a meu ver, é se concentrar naquilo que você faz de melhor, sem desperdiçar energia com bandas. Eu, por experiência própria, posso dizer que me tornei um egoísta – em um sentido proveitoso, positivo – e não mais dissipo minhas inspirações por causa de terceiros". Juntos, revivemos alguns momentos do passado e deparamo-nos o quanto estamos diferentes, o quanto nos transformamos em relação à personalidade enérgica, explosiva e até doentia de outros tempos. "Antes, quando estava começando, eu sonhava em ter vários cd's lançados... Hoje, estou com uma pilha de cd's amontoados, sem saber o que fazer com eles. Então me desanimei, vendo a quantidade de bandas que têm surgido. Só que hoje, penso em voltar a criar – não por um movimento ou para ser lançado nos mais diversos formatos, mas por mim, pelo meu prazer em tocar", dizia ele. "Que bom saber disso! Eu particularmente acho besteira criar desinteresse pela música só pelo fato de existirem outros que tocam um estilo similar ao seu". Eu lembrava-me, naqueles instantes, momentos específicos de um filme que me marcou bastante e, assim sendo, foi assistido por várias vezes: Sociedade dos poetas mortos. "É preciso", dizia o Prof. Keating, "que vocês encontrem sua própria voz"; também recordava a famosa frase de Ghandi: "Você pode ser a diferença que deseja ver no mundo". Também sobre a vida e planos conversamos. "Eu não sei o que faço. Penso que poderia levar adiante um projeto de doutorado, quem sabe conseguir uma bolsa do governo para dar continuidade à pesquisa na Alemanha e finalmente conhecer nossa Pátria-mãe. Mas não sei se vale a pena gastar energia e passar por situações complicadas, apenas para levar essa idéia adiante. Eu passei por momentos terríveis nestes dois anos em que desenvolvi e concluí meu projeto de mestrado. Quem sabe eu, então, me mude para uma cidade menor, preste um concurso e procure uma casa pequena para morar... Ler algumas coisas por conta própria, criar uma horta, ter cachorros", "Isto sim é vida!", eu lhe respondi com entusiasmo.
Também ontem, conversei com o Murilo. Pareceu-me que ele guarda questões bastante pessoais para conversar apenas comigo – posso estar errado, é claro –, como, por exemplo, em relação à sua música. Venho o apoiando já há tempos, tanto porque percebo seu talento, sua espantosa evolução com seu violão, quanto por conhecer bem sua história de vida e sua sensibilidade para com a música. De antemão, veio me dizer o quanto estava se sentindo feliz pelo fato de sua música estar sendo bem aceita entre seus amigos e pessoas que lhe são mais próximas. Não me precipito ao dizer que seu futuro projeto será uma espécie de Lebensessenz feito no violão. Além estar se dedicando a um só instrumento, suas músicas são frutos de questões pessoais, de seu romantismo desiludido - elementos quase primordiais no que faço. A diferença crucial é a de que ele já começou com músicas ótimas.
Não tendo êxito em dormir, decidi procurar algumas fitas de vídeo com gravações caseiras – eu, sem que me desse por conta, não havia estragado a câmera que de minha mãe havia emprestado. Pouco antes de levantar, passeei meus olhos sobre alguns poucos capítulos de um compilado de artigos que envolvem misticismo e ufologia, material que pertencera ao pai da Luciana e que por sua bondade, encontra-se em minhas mãos. Não sei se há ainda em mim parte de um ceticismo ateísta ou se sou eu apenas crítico demais, ignorante demais ou se ainda não me foi possível compreender a proposta por inteiro, mas confesso que algumas coisas não me agradaram no que li. É claro, não posso deixar de mencionar o que fora escrito sobre as propriedades contidas no uso da pirâmide, a qual era muito usada por meu pai quando eu ainda era criança. Lendo sobre a magia dos olhos, senti-me aborrecido com o ritual que era proposto, como complemento de um texto fabuloso que dava a entender certas especificidades suas. Tal ritual consistia em se por à contemplação de um copo de água, centrando todos os pensamentos ruins, negativos. Em seguida, devia-se jogá-lo junto de água corrente de uma torneira. Isso, no mínimo, me parece antinatural, primeiramente porque acredito ser quase impossível remover lembranças ruins; segundo, porque elas são elementares, fundamentais para o nosso equilíbrio – se amadurecemos, tão logo temos como incentivo o horizonte adiante, justamente porque percebemos ter superado os erros passados. O problema nisso está no fato de que indago se estou sendo eu crítico e severo demais, ou se acaso é realmente uma necessidade a contemplação apenas através da paz e da harmonia, como ponte aos universos espirituais. Muitos grupos fazem suas próprias regras e eu, por vezes, acabo deixando-os de lado não porque não parecem interessantes ou donos de sabedoria, mas por eu não concordar com alguns preceitos que por eles é proposto. O espiritismo, por exemplo, me é interessante – aliás, não apenas isso; meu pai mesmo indiretamente me incentivava a segui-lo. Mas, como pude comprovar na única reunião em que estive presente – em um centro espírita – o fato de adotar Cristo como centro pareceu-me como regra absoluta da ponte acima referida, do caminho a outros mundos e passagens. E eu, no caso, não tenho como ignorar a história, os feitos e contribuições de uma infinidade de civilizações bem anteriores ao apogeu do cristianismo e simplesmente dizer: "Sim, Cristo é o centro". Mas, voltando à questão do texto lido, tendo eu exposto algumas reflexões, posso dizer que em certos aspectos acabo me sentindo um pouco deslocado e pensando que a resposta por mim procurada tem de ser individual – embora aguce minha argumentação através da colheita que faço em várias vertentes. Nesta hora, relembro a figura do meu amigo Zientek, quando falava sobre sua dificuldade em aceitar as regras, a ritualística e mesmo a hierarquia de determinados grupos que freqüentou. Dizia ele não suportar a idéia de mestres, de roupas claras e mesmo do fato de envolver a figura de Cristo. A meu ver, guerra e paz caminham juntas – eis, pois, o meu motivo de admiração da espiritualidade hindu, tibetana e helênica. Se a guerra total, sem um objetivo, leva – segundo Adolf Wagner – à anarquia total, também a paz extremada é prejudicial ao humano. Posso estar errado, mas às vezes a Luciana – talvez porque herdada esta característica de seus pais, ambos fortemente místicos – me vê como alguém inteiramente pacífico, o que não é verdade. Lembro-me que em nosso primeiro encontro, a Cristiane dissera algo como: "Eu sou mais fria nessas questões de amor, mas a Luciana... Ah, ela é muito doce! E é por isso que às vezes acaba se decepcionando! De fato, ela está certa quando crê que possuo um coração bom, mas não se pode esquecer: ele não se reserva a tudo e a todos. É justamente por perceber as ruínas do mundo, a degeneração humana, a extinção de valores nobres, enfim, é por notar e criticar o que há de ruim que meu amor aumenta por coisas ou pessoas que prezo, admiro, respeito. Como dito em relação à morte do meu tio ou ao adoecimento da ex-advogada do meu pai, eu, por eles, não demonstro o mínimo de compaixão; não porque sou um sanguinário, um insensível, mas porque em sua imagem predomina o que eles fizeram de prejudicial aos meus familiares e a mim. Às vezes com a morte, pessoas acabam se tornando santas aos olhos de alguns; estes criticam-nas em vida, mas bastou sua morte para dar fim a isso e substituir a aversão pela harmonia e admiração falsa. Eu não sou assim. Posso tomar como exemplo pessoas próximas que morreram, cujas mortes não me fizeram gerar qualquer sentimento de culpa, de pena ou tristeza. Mesmo em relação as que se foram, eu chego a manter uma postura que pode ser considerada fria, se comparada à reação de grande parte das pessoas em relação à perda de pessoas próximas – eu procuro relembrar os feitos, os valores, a sabedoria, e não a morte por si só. Tal como Marquês de Maricá propõe, devemos, na verdade, lamentarmos os projetos que são cancelados com a morte, e não o seu caráter natural, inevitável. Ainda sobre esta encadernação, encontrei um texto que fala sobre telepatia. O exercício proposto pareceu muito mais natural e equilibrado que o anteriormente referido. Propõe-se fazê-lo junto de outra pessoa e, de início usar textos curtos e objetivos.
Revirando a casa, fui ao quarto de despejo e encontrei uma série de objetos interessantes dos quais sequer me lembrava da existência. Em outros tempos, eu tinha o costume de fazer isto: durante as noites de insônia, ficava a organizar meu quarto ou revirar gavetas, sempre repletas de papéis. Encontrei, de início, um pequeno e curioso jogo de cartas estampadas com grandes nomes da literatura mundial. E eu, que anos atrás reconhecia um ou dois, hoje já estive familiarizado com boa parcela. "Eça de Queiroz... Nossa, como ele se parece com um alemão nesta foto! Lao Tsé, sim... Grande! Nossa, então é esse o famoso Gerhart Hauptmann? Knut Hamsun! Goethe! Dostoievski! Ah, que falta fez Thoreau aqui!". E quem sabe em mais alguns anos, a revirar meus objetos em outras noites de insônia, eu possa ser cada vez mais detalhado, dono de uma base sempre maior, acerca destes e de outros escritores. Em meio a cadernos, textos acadêmicos, um microondas abandonado e um livro sobre etimologia ucraniana na Colônia Dorizon - PR, deparo-me com um bilhete que sem rodeios, tocou meu coração. Era de minha autoria. Nele estava escrito: "Pai, arrumo agora a biblioteca que por tantas vezes o senhor me dizia necessitar de organização. Ouço lá fora o coro dos cachorros que por tantas vezes prometi que o senhor iria vê-los, depois que deixasse o hospital. Mas o senhor não pôde ver a biblioteca organizada, nem trazer para dentro de casa os cachorros que sequer chegou a vê-los nascer". Bilhetes como estes me parecem como se dentro de uma garrafa, fossem jogados ao mar – no caso, o mar onde somente aqueles que freqüentam esta casa é que terão a possibilidade de encontrar. Não lembro ao certo em que circunstâncias eu me encontrava quando o escrevi, mas algo me diz ter sido uma referência ao bilhete que encontrei na biblioteca, abandonado em algum canto, escrito à máquina: "A maior herança que deixo para o meu filho é o exemplo da minha vida". Era escrito, naturalmente, pelo meu próprio pai.
Tive momentos de nostalgia e, por instantes, quase chorei em um misto de melancolia e alegria ao rever filmagens antigas de minha família. Meu pai, como sempre, atrapalhado na hora de filmar – trêmulo e constantemente na dúvida: "Está filmando ou não?". Minha pequena irmã ocupa o centro das gravações. Eu raramente apareço. Magro e com o cabelo raspado, eu era dono de um visual assustador, agressivo e macabro – ele, na verdade, também era reflexo do meu interior, pois aquela era uma fase inquietante. Em dado momento sou focalizado e meu pai diz: "Aquele é o lobisomem". Posso imaginar o quanto se envergonhava, tanto nas minhas ações, no meu comportamento, na relação consigo, quanto ao meu aspecto físico. Não sou hipócrita – ele tinha todos os motivos do mundo para me detestar. Eu não falava consigo; durante as tardes, eu dormia. À noite, ouvia música, andava pela casa e mesmo que não fosse minha intenção, fazia o possível para colaborar com sua insônia. Sempre estava a pedir-lhe dinheiro. Estudava em um ótimo colégio – contudo, minhas notas eram sempre péssimas. Acordava atrasado para a aula praticamente todos os dias – "Pai, o senhor pode me levar à aula?", "Tá... Coloque a água para esquentar o chimarrão enquanto eu lavo o rosto". Quando trazia amigos a casa, eu fazia referências a ele não como um grande médico, um sábio, uma pessoa experiente, mas como "alguém engraçado". Creio que o que conversávamos de interessante não era o suficiente para que nele se desenvolvesse um sentimento, um carinho realmente grande. Não para menos, dizia que eu estava abaixo do cachorro na lista daqueles a quem ele amava. Ele era o tipo de pessoa que não abandonava sua humildade, seu bom coração. Se nós sentávamos à mesa e, por exemplo, houvesse pouca salada, ele logo dizia: "Pode pegar tudo para você", por mais que eu fosse um dos seus pratos prediletos. É claro, eu também não posso ocultar o meu lado bom para com ele. Apesar da freqüência incomparavelmente menor ao da minha mãe, eu estive ao seu lado em momentos difíceis. Em 2004, quando ele precisou ser operado de um tumor na garganta – do qual ele saíra sem nenhuma seqüela, dizendo que quem o havia operado fez um trabalho verdadeiramente artístico – passei noites consigo no hospital; nas infinitas ocasiões em que ele bebia, eu me mantive de prontidão para ajudá-lo; e nos seus últimos tempos, quando estive ao seu lado desde o seu internamento no Hospital Militar de Curitiba, bem como quando foi transferido para a minha cidade. Talvez se ele ainda estivesse vivo, quem sabe eu continuaria não sendo alguém a quem ele tivesse um sentimento profundo e intenso – por causa dos meus erros do passado e mesmo porque fazia parte de nossa natureza sermos silenciosos um com o outro. Mas, eu o adoro, o amo, e tal como algumas poucas figuras que admiro, tenho o pensamento romântico de que ele me contempla, observa minhas ações e passos. Em um mundo onde tantos se escravizam diante de um deus que lhes é estranho e que apenas os pune, os submete à situação de verme, ou que os faz acreditar que a chave para tudo está no acumulo de bens materiais, ou ainda que os coloca como culpados desde o início da vida, eu estou contente: adotei meu pai como meu deus observador – Deus hereditário, arquétipico, do meu sangue.