Devaneio
A expressão morte para mim sempre teve uma conotação estranha: - ser enterrado e ao mesmo tempo ir para o céu. Não conseguia entender de que maneira o defunto conseguia retirar toda aquela terra que o cobria e ir para céu. - Ir para o céu, como? Voando? Meu pai sempre dizia que nada disso acontecia. Não tirava nenhuma terra, nem ia voando para o céu. O que ia para o céu era o espírito, mas em momento oportuno me explicaria. Piorou. O que era espírito? Será que era possível encontrá-lo pelas ruas passeando? Creio que não. Nunca vi um espírito, nem de longe. Estas coisas são muito confusas.
Muitas vezes meu pai chegava do trabalho e contava à minha mãe que fulano, ou filho de fulano, ou mãe, ou esposa, alguém tinha morrido. Logo vinham todos aqueles pensamentos: morte, enterro, céu... Então, me virava para o canto e dormia.
Certa noite foi tudo diferente, meu pai chegou chorando e contou à minha mãe que seu pai havia morrido. Estremeci. Meu avô, justamente ele ia ser enterrado, ir para o céu e toda aquela confusão que minha cabeça jamais conseguiu entender. Fiquei mais aliviado quando minha mãe foi ao quarto e disse que teríamos que ir ao velório. Desta vez ia acompanhar tudo e, claro, tentar entender o que tanto me incomodava.
Chegamos ao velório. Meu avô estava em cima de uma cama, rodeado de velas acesas, um crucifixo de metal acima de sua cabeça. Não tinha caixão. Os carpinteiros o construiriam durante a noite, no terreiro. Era o costume local.
Aproximei-me do corpo estático de meu avô naquela cama. Rosto esbranquiçado, mãos juntas, olhos semicerrados, barba por fazer. Não podia ser ele, pois estava sempre com a barba feita, muito bem vestido e com expressão alegre estampada no rosto. Era o seu perfil. Não quis mais olhar e sentei-me ao lado de minha mãe.
Meu pai estava lá no terreiro acompanhando o trabalho dos carpinteiros. Estes tinham serviços quase todos os dias à noite. Perguntei a minha mãe se podia ir me juntar ao meu pai. Ela assentiu com a cabeça.
Era inverno e apesar de estar bem agasalhado, a noite estava muito fria. Não me importei. Queria ver tudo que pudesse para tentar entender o que minha cabeça jamais conseguiu captar. Meu pai algumas vezes tentou, mas não me convenceu. Imaginava que tinha mais alguma coisa naquilo tudo e eu precisava o quanto antes, satisfazer as minhas curiosidades.
Avistei meu pai sentado num barranco próximo aos homens que trabalhavam. Eles serravam madeira, juntavam e pregavam-nas. Cobriam aquela madeira serrada e pregada com um tecido roxo. Um deles parou e tirando um cigarro do bolso, olhou-me como se eu estivesse atrapalhando. Dei-lhe uma olhada e fui para perto do meu pai que foi logo dizendo: “aqui está muito frio, fique lá dentro”. Não respondi. O frio não me importava. Queria ver tudo de perto.
O carpinteiro que havia me olhado voltou ao trabalho. Pegou outra madeira, mediu-a e pôs-se a serrá-la. O outro continuava a esticar aquele tecido de cor estranha, muito feia por sinal, assustadora.
Continuei a observar sem muito entender, mas não queria perguntar nada ao meu pai. Afinal, aquela caixa coberta de pano roxo era para colocar o seu pai que jazia numa cama. Mas será que aquela caixa era para proteger meu avô da terra? Indaguei em silêncio: indagação idiota, pois, minha cabeça nunca tinha respostas convincentes.
As pessoas continuavam chegando aos montes. Algumas eu conhecia, outras não. Vinham, cumprimentavam meu pai e comentavam: - mas ele estava tão bem! E seguiam até a cama onde estava meu avô. Olhavam-no e sentavam-se - os homens com o chapéu na mão, as mulheres se juntavam às outras.
A caixa forrada com aquele tecido assustador já tomava uma forma estranha e tão logo meu avô seria colocado ali. Um dos carpinteiros, aquele que continuou a trabalhar enquanto o outro me olhava, disse: - missão cumprida. Já podemos levar para dentro para colocar o defunto.
Um pegou numa ponta, outro na outra e rumaram-se para onde estava meu avô. Não esperei meu pai e os segui. Tinha necessidade de ver. Colocaram a caixa ao lado da cama e pediram que alguém lhes ajudasse. Meu avô era forte, alto e certamente pesado. Apareceram três voluntários. Negros e fortes. Tiraram meu avô da cama e o colocaram naquela caixa. Não tiveram muita dificuldade, pois, meu avô parecia estar todo duro. Assisti a tudo sem pestanejar.
Pegaram aquela caixa com meu avô dentro e a colocaram em cima de uma mesa. Abriram a tampa e transportaram o crucifixo de metal e as velas para aquele outro local. A madrugada fria já começava a despontar. Uns tímidos raios de sol surgiam no horizonte. Em breve seria manhã e certamente começariam a preparar a cova para enterrar meu avô.
E continuava comigo a incógnita: enterrar, ir para o céu... Passei toda a noite acordado. Necessitava de acompanhar tudo.
Sentado a um canto estava um senhor com o chapéu na mão que me olhava muito. Fez um sinal para que eu fosse de encontro a ele. Parei, pensei e fui. Convidou-me a assentar ao seu lado. Virou-se para mim e perguntou: “estive observando que você não dormiu nada. Não está com sono”? Respondi que não, e que queria ficar com meu avô, gostava muito dele, menti ( Menti o fato de não ter dormido, não o gostar do meu avô ). Tinha, na verdade, adoração por ele e sempre tive a recíproca. Aos sábados pela manhã meu avô, em sua caminhonete, passava em minha casa e me convidava para sair: às vezes íamos ao parque, assistir a competição de cantos de pássaros. Sempre arrumava um lugar para irmos.
Continuamos a conversar. O senhor me disse chamar-se Sr. Antônio Miranda. E, por gentileza, também disse o meu: Luiz Fernando. “Minha mãe e meu avô me chamam de Nandinho, mas meu pai nunca teve este hábito”. Como já sabia o seu nome, perguntei-lhe se poderia chamá-lo apenas de Sr. Miranda. Prontamente disse-me que sim, aliás, era assim que era conhecido e tratado pelos amigos, me respondeu.
Sr. Miranda passou a me contar coisas de meu avô, Sr. Sérgio Coutinho. As horas iam passando e eu já começava a sentir fome. Pedi licença ao Sr. Miranda, prometendo-lhe voltar. Fui até a minha mãe e comentei que estava com fome. Ela levantou-se imediatamente e foi até a cozinha. Como conhecia a casa não teve dificuldades em encontrar biscoitos e broinhas. Ofereceu-me café, mas preferi leite. Saciei e voltei para perto do Sr. Miranda, que me perguntou: “satisfeito agora”? Respondi que sim e assentei-me no mesmo lugar onde estava. “Podemos continuar? Perguntou-me Sr. Miranda”. “Sim, claro, respondi ajeitando-me no assento”.
- Pois bem! Seu avô, Sérgio Coutinho sempre foi um homem de boas maneiras, tinha o carinho de todos, principalmente pela sua honestidade e presteza. Nunca mediu esforços para ajudar a quem o pedisse. Todos os bens adquiridos foram fruto do seu incansável trabalho.
Interrompi-o: “Sr. Miranda tem coisas que não consigo entender direito e talvez o senhor possa me explicar melhor que meu pai. Ele já tentou algumas vezes, mas não satisfez as minhas curiosidades”.
- Pois não, filho! O que eu souber não hesitarei para te explicar. Farei o possível para que entenda e se sinta satisfeito, prometo. Vamos lá, pergunte!
- Sr. Miranda o que não entendo é a morte. É para mim um tormento não entendê-la. Veja bem, morre, enterra, sobe para o céu. Como é possível tudo isso? Morre, é enterrado e ainda a pessoa consegue retirar toda aquela terra e subir ao céu?
- Não filho, não é tão complicado assim. Seu pai não teve o tempo suficiente para te explicar detalhadamente. Certamente da forma que vou te explicar, você entenderá, não se preocupe. Não há tanto mistério como a sua imaginação criou.
Neste instante as pessoas presentes começavam a se aproximar daquela caixa em que estava meu avô. Logo entendi. Todos em volta, começaram a rezar. Minha mãe também se aproximou, aumentando o coro. Sr. Miranda pediu-me licença e foi estar com todos, mas antes prometeu que continuaria as explicações. Minha mãe, vez ou outra me olhava, sem perder o ritmo da reza.
Se eu estivesse em casa certamente já teria almoçado. Este pensamento já demonstrava estar novamente com fome. Mas desta vez de arroz, feijão, carne, menos verdura; era onde travava sempre a briga com minha mãe. Senti que da cozinha vinha cheiro de comida e talvez minha barriga tivesse percebido o cheiro e, por isso, eu estava com fome. Não tinha dúvida, estava mesmo com fome.
Terminaram a reza e desta vez foi minha mãe que se aproximou de mim e perguntou-me: - já está com fome? Com rapidez, respondi que sim. Não tinha como negar. Minha barriga já fazia aqueles barulhos estranhos. Fomos para a cozinha. Almocei mais que o de costume em minha casa. Voltei à sala e lá estava Sr. Miranda. Desta vez cochilando, feito um cavalo velho. Pensei em não incomodá-lo, mas faltavam as explicações e queria muito ouvi-las. Cheguei e ao assentar-me, acordei-o. “Já estou velho, filho! Argumentou: Não aguento mais passar noite sem dormir. E ontem tive muito trabalho. Fiquei muito cansado. Mas não esqueci que lhe devo explicações sobre o que te incomoda tanto.
- A morte meu filho, começou Sr. Miranda, meio sonolento, bocejando. Ela não é da forma que a maioria das pessoas traça. Não, não é mesmo. Sabe aquela flor que você às vezes sente vontade em apanhá-la para dar à sua mãe? Mas prefere, por razões diversas, fazer no dia seguinte e quando você volta ao local, ela já está caída no solo? É para dar espaço para outra flor que necessita, nascer...
- E assim somos todos nós que nascemos, procuramos fazer o melhor, como o fez seu avô Sérgio. Não importa para onde ele vai, importa sim o que foi. Importa a felicidade que ele sentiu e a que conseguiu proporcionar às pessoas que o amavam. Pense que a morte é o renascimento de alguma coisa, em algum lugar ( ou talvez nenhum... ). E ai um dia, nosso tempo vence e temos que dar espaço para outros que precisam nascer, ser felizes e por fim também morrer. Isso é a morte.
Os presentes começavam novamente a se juntar. O que seria desta vez. Era o enterro. Seis homens amigos de meu avô agarraram as alças daquela caixa, levantaram-na e caminharam para a porta. Os outros foram aos poucos formando uma fila atrás e seguiram aqueles homens que carregavam a caixa. Levantamos e os seguimos também. O cemitério era próximo, logo estaríamos lá.
No cemitério, as pessoas tornaram a olhar meu avô e eu também, mas desta vez sem tanta necessidade de entender a morte. Olhei para o lado e não vi o Sr. Miranda. Procurei-o entre as pessoas, mas em vão, parecia ter indo embora.
Colocaram meu avô num buraco fundo e rapidamente o cobriram de terra. Logo, ouvi minha mãe me chamar:
- Nandinho, seu avô já chegou!
Acordei, e lembrei-me que era sábado e tínhamos marcado para assistir a uma peça que seria encenada no parque.