Gato ou cachorro?

Gato ou cachorro?

Maju Guerra

Eles sempre quiseram ter um animal de estimação, agora a oportunidade surgira. Aposentados, filhos criados, netos adolescentes, tinham acabado de se mudar para uma cidadezinha do interior bem próspera, cada um exercendo a atividade do seu gosto. Ele com seus laudos de engenharia, ela era paisagista.

A relação entre o casal sempre foi muito harmônica, raríssimos desentendimentos. O grande problema da vida dos dois, devido à conotação que alcançou, girou em torno da decisão sobre o animal de estimação que teriam. Ele não tinha dúvida alguma sobre o assunto já encerrado do seu ponto de vista, o cachorro já estava escolhido. Ela queria uma gata, sonho acalentado em silêncio.

Mudança arrumada, a casa em ordem, sentaram-se na varanda para falar sobre o assunto. Ele foi logo dizendo que passara da hora de discutirem sobre a raça do cachorro que teriam, mas ia avisando que não lhe agradavam cães pequenos. Ela levou um susto e lhe perguntou: Que cachorro? Quem disse que eu quero um? Cachorro faz muita bagunça, quero a minha gata. Aí ele levou um susto: Gato, mulher? Você enlouqueceu? Olhe pra mim e diga se tenho cara de quem é dono de gato? Era só o que me faltava nessa altura da vida. Começou a rir.

A mulher, como nunca o fizera durante a vida em comum, respondeu rispidamente: Veja como me trata. Além de desdenhar a minha preferência, coisa que aliás sempre fez, ainda está rindo em tom de deboche. Saiba o seguinte, não vou abrir mão do que quero. É gato e acabou. O marido retrucou meio ameaçador: Isso é o que nós vamos ver. Saiba você que gato aqui não entra, e acabou, digo eu. Levantou-se e foi para dentro de casa dormir no quarto de hóspedes.

Ela se assustou, não esperava aquela reação de nenhum dos dois, estava chocada até com ela mesma. Nervosa, imediatamente telefonou para a filha: Querida, seu pai ficou maluco, foi dormir no quarto de hóspedes, tudo por causa do animal de estimação. A moça, sem entender muito bem o que estava acontecendo, pediu que falasse devagar e explicasse com mais detalhes. A mãe contou tudo, começou a chorar, foi um Deus nos acuda. A filha perguntou: Por que não um gato e um cachorro? A casa é grande, brigar pra quê? Ela lhe respondeu que agora gato e cachorro eram totalmente incompatíveis, tratava-se de “ou”, não mais de “e”. A moça pediu que se acalmasse, telefonaria para o irmão, os dois iriam sozinhos bem cedo no sábado, menos de dois dias para as coisas se ajeitarem. Telefonaria para o pai antes de chegar.

Os dois dormiram separados pela primeira vez em quarenta e seis anos de casados. Ela acordou pela manhã com um mal-estar terrível. O marido já estava na cozinha tomando o café da manhã, não lhe dirigiu uma palavra sequer. Ela fingiu não notar e foi preparar o seu. Ele acabou, saiu para mexer na horta. Passou o dia fora de casa, só entrou para comer uma pizza. Quando anoiteceu, beliscou qualquer coisa, foi para o quarto de hóspedes de novo batendo a porta

O dia pra ela foi péssimo, comeu sozinha, tratou do jardim, limpou a casa. Sentia-se ofendida com o descaso, um pesadelo. Ele não comera o almoço que fizera para os dois, nem a sopa da noite. Olhos marejados, assistiu televisão, silêncio inacreditável na casa. Por fim foi dormir sozinha novamente.

Cedinho os dois se levantaram com o som da buzina de um carro. Saíram para abrir o portão, um batendo no outro sem querer. Ele foi logo abraçar o filho, ela correu para a filha.

Todos dentro de casa, a conversa começou. O filho falou logo da sua preocupação, estavam alarmados com os acontecimentos, nunca souberam de brigas ou desavenças entre os dois. Afinal, que crise era aquela? Algum tipo de brincadeira sem graça? Dois adultos se comportando de forma infantil por causa de um animal de estimação?

Em meio à confusão, os dois falavam ao mesmo tempo. Restou à filha exigir silêncio, que cada um falasse por vez e escutasse o outro. O pai começou. Não compreendia mais a mulher, estava de cabeça virada por causa de um gato, não respeitava mais sua opinião, chegou a desacatá-lo. Ele sabia e sempre soube que o melhor era um cachorro. Ela respondeu que ele sempre fora um controlador autoritário, a vida toda acatara suas vontades apenas para evitar brigas e discussões. O homem era um cabeça dura, não ouvia ninguém, além do mais um cachorro iria desarrumar a casa. O marido espantado respondeu que ela era uma chata com mania de limpeza, tudo corretamente no lugar senão ela tinha um ataque. Ele não podia colocar os pés em cima da mesinha de centro enquanto assistia televisão. Não tinha liberdade de tomar suas cervejas em paz, porque se molhasse qualquer móvel ela amarrava a cara, a casa sempre pareceu um quartel.

As acusações mútuas continuaram, quem diria de tanta mágoa guardada? Tudo vindo à tona, ressentimentos expostos, foi uma faxina na relação. Ela ainda disse que se a história continuasse era separação na certa. Ele não perdeu a pose, se fosse necessário haveria separação. A discussão ia além da escolha do animal, era caso mais sério. Todos acabaram por perceber que o casamento não havia sido tão harmônico como imaginavam, esse negócio de perfeição era lenda. Cansados de discutir, um olhou aliviado para o outro, haviam tirado um peso das costas. Depois disso realmente fez-se silêncio.

Os filhos não sabiam como agir, quem imaginaria uma situação daquelas? Tiveram a ideia de usar uma tática das boas criada pelos pais quando eram crianças. Depois de acalmá-los pediram que, antes da tomada de qualquer atitude mais drástica, cada um fizesse uma lista dos dez animais que mais gostariam de ter. Parecia uma coisa boba, mas não custava tentar. O primeiro animal que fosse comum às duas listas seria o escolhido. Que tal? Os pais concordaram somente por eles, frisaram bem. Deram-lhes papel e caneta, cada um se sentou em um canto da sala pra fazer a sua. Demorou um tanto, venceu o papagaio. Os dois se animaram e finalmente concordaram num passe de mágica. Ele foi logo dizendo: Quero um papagaio que fale, disso não abro mão. A mulher declarou: Já vai começar? Tudo bem, mas eu vou decidir o lugar que o papagaio vai ficar pra não sujar a casa. Desandaram a rir diante da infantilidade da cena.

O resto do dia transcorreu tranquilo, tudo no seu lugar, nem parecia que a sala já havia se tornado um campo de batalha. Os filhos se foram em paz.

Compraram o papagaio, ele ensinou o bicho a falar, ela escolheu seu lugar.

Hoje o marido coloca os pés e a cerveja na mesa de centro pra assistir seus jogos de futebol, joga as almofadas no chão, ela nem se toca. Ele passou a aceitar as opiniões da mulher sem críticas, basta ela lhe dar uma boa olhada. O papagaio é uma diversão, fala pelos cotovelos e ainda canta “É o amoooooor que mexe com a minha cabeça e me deixa assim...”

Maria Julia Guerra.

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