Autorretrato de uma dama (Título propositalmente atualizado conforme novo acordo ortográfico)
Prólogo
Seria um personagem masculino, talvez até fosse outra história, porém sinto-me mais a vontade no universo feminino e suas constelações de infinitas e loucas possibilidades.
Resolvi começar diferente pra não terminar igual, subitamente e sem saber como vai terminar, deixar fluir...
Um pequeno conto imaginado assim, de improviso, como o teatro.
Abre o pano
Primeiro Ato
Tragou lentamente a bituca do cigarro e deu o último e generoso gole em seu uísque barato.
Retocou o velho batom vermelho e ajeitou os cabelos num penteado mal preso.
Aquele ventilador de teto sempre lhe causava vertigens.
Da cama, se enxergava no espelhinho do banheiro, viu que seu delineador estava levemente borrado.
Talvez pela quantidade de uísque ingerido, não dominava bem as mãos para retocá-lo, assim mesmo, com um pouco de saliva e paciência, resolveu consertar o borrão dos olhos.
Notou sua aparência cansada, que olheiras profundas para seus 25 anos de idade.
Necessitava urgente comprar uma base e um pó compacto para disfarçá-las. Acendeu outro cigarro.
Segundo Ato
Se esforçava para levantar daquela cama, ver a luz do sol, o quarto cheirava a mofo e as infiltrações na parede formavam desenhos levemente abstratos, a faziam lembrar Picasso.
No chão, o gordo e velho gato acabava de destruir o resto do que um dia havia sido um carpete e brincava em cima de seus próprios excrementos.
Sentia seu cigarro saborosamente especial aquela manhã... E uma vontade de tomar café, instigada pelo aroma invasivo vindo do apartamento vizinho.
No chão algumas roupas, uma obra de Nelson Rodrigues, e um velho disco de Cartola, que já nem tocava mais, todo riscado, peripécias do bichano...
Terceiro Ato
Apesar da preguiça descomunal que a perseguia era hora de se levantar, lavou o rosto e se vestiu e acabou de tirar com a acetona o resto do esmalte que havia começado a tirar com o dente.
Deu comida ao gato e uma limpada no carpete.
Estava quase na hora de trabalhar, esperava a chegada de um novo empresário para velhas negociações.
Quarto Ato
A campainha estrilou, instintivamente acalcou a bituca no cinzeiro abarrotado do criado mudo.
Levantou-se depressa, prendeu o gato na cozinha, botou perfume pra disfarçar o leve odor etílico de acetona e uísque que pairava no ambiente.
Estugou o passo até a porta, e prontamente recebeu o empresário, que deixou a maleta de couro e o celular importado sob a mesa para começarem as negociações.
Disfarçadamente o encarava como quem pretendia buscar em seus olhos um sentido para tudo aquilo.
Desta vez a negociação teria que ser mais valiosa, afinal, tinha planos de melhorar a vida, ter um carro, usar peles como as artistas, e sair daquele apê de quinta, ser uma dama.
Farto de tanta conversa, o empresário tomou outra dose, e desafrouxando o nó da gravata, resolveu pôr as cartas na mesa e partir pro tudo ou nada.
Quinto Ato
Aceitou, precisava do trabalho e não poderia recusar aquela proposta.
Enlouquecidamente num impulso, ele buscou seus lábios, ela se esquivou, não pretendia beijá-lo queria apenas poder trabalhar e receber o salário combinado.
Porém mesmo ali, subjugada, vez ou outra, vislumbrava seu rosto no espelhinho do banheiro, notava a boca já sem cor e o olho borrado pela lágrima que teimava em não cair, porém cumpria seu trabalho e seu honorário seria pago.
O preço anteriormente combinado, que era de serviço completo, acabou sendo trocado por uma rapidinha mesmo, pois o rapaz deu-se conta que havia esquecido seu talão de cheques.
Pelo menos havia ficado também com o celular.
Cena Final
Cigarro tragado, uísque sorvido, outra ilusão perdida, não seria dessa vez que se tornaria dama, outro tipo de dama... E assim derrepente imaginou-se como protagonista de um filme de Neville de Almeida, ou quem sabe, Almodóvar.
Por baixo da porta mais boletos recém chegados, estômago roncando e o bichano que já destruía toda a cozinha pelo desespero de se libertar.
Retocando o velho vermelho de guerra, recebia o marido desempregado recém chegado de mais uma entrevista de emprego frustrada, com aquele mesmo sorriso de quando se conheceram, de menina faceira, inocentemente malicioso.
- Como foi teu dia?
- Tudo bem...
- Novidades?
-Não... Tudo como sempre, um dia normal como qualquer outro.
Como realmente foi.
E para ela, havia sido.
Epílogo
E o final parafraseia a velha capa daquele livro esquecido de Nelson Rodrigues- “A vida como ela é... ‘ Fecha o pano.