O Caso do Nonato
À época em que era recém-formado, doutor Werner diagnosticou no Nonato, um problema sem gravidade, mas que só seria solucionado com uma simples cirurgia, que foi realizada com sucesso.
Tempos depois, o paciente retornou ao consultório, reclamando das mesmas dores, às vezes com intensidade maior, do que antes de ter passado pela faca, segundo suas palavras.
Frente à insistência do operado, o médico resolveu fazer uma nova bateria de exames, que comprovou o que já sabia: o homem não tinha mais nada.
Mas, como os resultados não convencessem o paciente, o doutor convocou uma junta com os melhores médicos do hospital. Todos aprovaram o diagnóstico do jovem colega, até com louvores, dando alta ao Nonato, encaminhando-o a um psicólogo.
Mesmo após tantas consultas, exames e diagnósticos iguais, o paciente não se deu por satisfeito. Como não tinha mais a quem recorrer, retornou para sua terra natal, nos pampas, queixando-se a todos passageiros, que entravam e saíam do ônibus pinga-pinga, além de amaldiçoar a medicina e os médicos, revelando que, de agora em diante, só se trataria com um curandeiro indicado por um cunhado.
No coletivo, todos se solidarizavam com o sofredor, que segundo os cirurgiões não sofria de nada e estava louco, palavras do Nonato. A exceção era o motorista, que por precaução ao ouvir que o homem tinha que procurar um psiquiatra, queria amarrá-lo, e deixá-lo sozinho lá no último banco ou então trancado no banheiro.
Alguns anos se passaram. O prestígio do doutor Werner atingiu níveis internacionais. Sua clientela era formada por pessoas da alta sociedade local e até do país, e ele já tinha se esquecido por completo do homem lá da fronteira, quando um casal de idosos chegou em seu consultório da Previdência Social – onde o famoso cirurgião atendia duas vezes por semana, por questões humanitárias e o fez relembrar do antigo paciente.
- Ih, velha! Tu viste o nome do homem?
- De quem, velho?
- Do médico.
- E o que é que tem, Alcides?
- É o tal do Nonato.
- Não é não.
- É sim.
- Não é, não.
- É sim.
- Capaz que um homem com uma aparência tão fina ia ser um canalha daqueles.
A mão que escrevia a receita, tornou-se trêmula. Doutor Werner começou a lembrar do paciente. Teve a premunição de que algo desagradável estava na iminência de acontecer, principalmente ao recordar que o fronteiriço era um tremendo de um fofoqueiro, vivia a falar mal de todo mundo.
- Pois tô te dizendo que é!
- Não é.
Os olhos do cirurgião alternavam do marido para a mulher, como se os dois travassem uma partida de pingue-pongue. Acompanhou com apreensão, a busca de um papel que o paciente tinha na carteira, prova de que sua afirmação era verdadeira.
- Para te mostrar que eu tenho razão, eu guardei, aqui comigo, um papel onde eu escrevi o nome do médico safado que atendeu o Nonato. Deixei o nome dele junto com a identidade falsa, que aquele estelionatário estava usando lá pela fronteira, para enganar o povo – e aproximando a metade de uma folha de caderno dos olhos da esposa e depois, colocando-a sobre a mesa, ao lado da plaqueta que exibia o nome de Werner, mostrava que estava certo.
- Creeeedo! É ele mesmo! – concordava a senhora assustada.
- Pois não te falei?
- Então vamos embora, enquanto ainda estamos vivos!
Saíram correndo, esquecendo em cima de uma cadeira, um salame, comprado em um supermercado da capital.
À medida que o conceito de Werner crescia cada vez mais entre seus colegas e pacientes particulares, aumentava o número de pessoas, que ao chegar em seu consultório no hospital público e descobrir seu nome, indagava sobre o paciente que ele inutilizara.
O médico surpreendia-se com a quantidade de gente a quem o Nonato contara o fato, o que o deixava extremamente preocupado.
Em uma palestra que fazia para estudantes numa faculdade, o cirurgião ficou boquiaberto, quando um aluno pediu a palavra e lhe perguntou sobre o caso do Nonato. Tentando provar que tinha superado o episódio, Werner explicou o ocorrido, detalhadamente, mas duas semanas depois, quando teve que repeti-lo, num congresso de medicina em Porto Alegre, perdeu a calma. Pegou o carro e se tocou para a fronteira, louco para descarregar sua raiva no homem que estava minando sua sólida carreira.
Chegou à humilde casa, sem se preocupar com boas maneiras. Foi logo derrubando a porta com um pontapé. A única moradora, assustada, respondeu-lhe que a família que ali habitava, mudara-se há muito, sem deixar o novo endereço. Werner, profundamente embaraçado, desculpou-se, colocou a porta do lugar, pagou a mais pelo estrago, recomendando à mulher que comprasse alimentos e até uma coleira nova para o cachorro. Pediu desculpas novamente, e quando estava a sair, a senhora receosa, perguntou-lhe o nome.
- Aquele! – suspirou surpresa, de olhos arregalados e mãos sobre a boca trêmula, enquanto que, o cirurgião se retirava, fazendo-lhe gestos obscenos e a mandando para longe.
Mas, não foram só coisas ruins que aconteceram durante a viagem. Um médico, ao saber que o famoso colega estava na cidade, tratou logo de lhe fazer uma homenagem, na qual compareceram autoridades, o clero, empresários, intelectuais e o âncora do telejornal que puxava o saco de todo mundo, todos instruídos a nem sequer pensar no mais famoso morador da cidade, conhecido popularmente como a vítima do carrasco.
Já com o ego em alta, doutor Werner foi visitar uma escola pública, onde ao ser apresentado às crianças, assistiu atônito a várias delas saírem correndo, gritando pelas mães. Fato parecido aconteceu no hospital da cidade, quando um paciente, ao saber seu nome, arrancou um crucifixo da parede e o apontou para o cirurgião, gritando:
- Sai pra lá, Satanás! Sai pra lá açougueiro e ladrão de salame!
Foi uma enfermeira, quem informou ao visitante sobre o paradeiro do Nonato. Segundo ela, parecia que o homem havia se mudado para Pelotas, depois Santarém e logo a seguir Rio Branco, no Acre. “Ou seria Chuí, Campo Grande e Fortaleza?”, perguntava-se indecisa. Bom, o roteiro da retirada não tinha importância, procurava tranqüilizá-lo a enfermeira, garantindo-lhe que o fundamental era saber que o Nonato andava por aquela região.
O médico retornou à capital, torcendo para que sua informante estivesse enganada ou fosse péssima em geografia. Chegava a tremer, e, várias vezes, teve que parar o carro, impedido de dirigir, pensando que o caso podia ter atingido dimensões nacionais, como uma peste que se espalha de pessoa a pessoa, de cidade em cidade.
Mas, a situação era bem pior do que ele pensava. O ponto alto de sua desgraça aconteceu em um congresso nos Estados Unidos, quando um ouvinte japonês pediu a palavra, interrompendo sua exposição e lhe perguntou sobre o “The Nonato and the Salame Cases”.
Doutor Werner pensou em descarregar sua raiva sobre o público, mandando todos para o inferno. Conteve-se, afirmando que o Nonato era um famoso extremista, cuja meta era denegrir a imagem da medicina mundial. O palestrante foi aplaudido de pé, principalmente, ao citar detalhes de um plano diabólico, chegado até ele através de informantes, o qual revelava os objetivos do louco, entre eles, o da proliferação de vários vírus, o desaparecimento do American Way on Life, o ressurgimento do comunismo, além do extermínio da família, das consultas pagas e dos jogos de tênis e golfe.
Ao final, tantas eram as ameaças que pairavam sobre as cabeças dos ilustres cirurgiões, que ninguém mais teve coragem de perguntar sobre o salame.
O retorno ao Brasil, com sua consagração mundial, marcou também a volta do sossego. Durante anos, não apareceu nenhum paciente com aquele jeito desconfiado e até um pouco debochado, quando olhava para seu nome sobre a mesa. Aliás, por um longo tempo, o médico não ouviu falar sobre o Nonato, nem sequer pensou nele.
Mas, um dia, entrou em seu consultório, um senhor de cabelos brancos, passos lentos e fala carregada, com sotaque dos pampas. Ficou sentado, esperando que o doutor terminasse de fazer algumas anotações. Passeava o olhar pelos cartazes, que mostravam o corpo humano e diversos órgãos detalhados e os folhetos de remédios, até que descobriu a plaqueta sobre a mesa.
- Bah, o senhor era o médico do Nonato?
Um frio, uma tremedeira de pavor e desamparo, além de uma vontade incontrolável de chorar tomaram conta do cirurgião, que procurava se conter. Sua voz baixa e trêmula denunciava o nervosismo, que dele se apoderava. Procurou um calmante na gaveta, não achou. Tomou um antibiótico e um antitérmico, que estavam ali, como amostra grátis.
- Sim – respondeu timidamente, tentando perceber o efeito, que sua afirmação produzia no rosto do homem, que no entanto permanecia calmo.
- O senhor o conhece? – prosseguiu o médico.
- Sim.
- Há muito tempo? – questionou, enquanto buscava alguns medicamentos para os nervos. Ao lembrar que não os possuía, engoliu um punhado de pílulas contra prisão de ventre.
- Desde os tempos de guri.
- E ele está lá pelo norte do país?
- Não. Ele só foi visitar um irmão e uns parentes que se mudaram pra lá.
- E por onde ele anda? – indagou receoso, já prestes a ter uma crise nervosa, quase tomando tintura de iodo, achando que era homeopatia.
- Morreu.
Doutor Werner sentiu um alívio e não procurou se recriminar por uma imensa alegria, que ameaçava transbordar numa sonora gargalhada e na vontade de soltar foguetes ali mesmo no consultório. Se havia algo a ser censurado, recriminava-se, era sua auto-medicação, lembrando-se que sempre alertava seus pacientes a procurarem um médico e não tomarem remédios por conta própria.
- Faz tempo?
- Mais ou menos.
- Morreu de quê?
O idoso ficou meio sem jeito, demorou um pouco para responder. Ensaiou, hesitou, olhou para um lado, para o outro e frente à insistência do cirurgião, desabafou:
- Buenas...dizem...que foi de um antigo erro teu.