Desconforto

Era um calor de matar naquela manhã, um amontoado de gentes de todos os tipos, cores, estirpes e humores, porque eram vários também os males que as ajuntavam naquele nosocômio. Sim, nosocômio. Seria mais simples dizer hospital, mas a sensação naquele ambiente nada tinha de simples, tampouco de agradável. E nosocômio, em si, já nos traz um desconforto, na pronúncia e na audição, por isso se quadra tão bem às circunstâncias.

O ambiente nosocomial é um lugar de reunião e de interação, mas jamais oferecerá desfrute. Parece-nos, digamos, ofensiva a paz de espírito em tal sítio de expiação. Multiplique-se esse pecado se o mantenedor for o Estado. Hospital público é destinado aos lazarentos desprevenidos. Todos se condoem e se consolam, queixam-se de seus padecimentos, do descaso de médicos que receitam remédios impossíveis, da agenda de consultas, das filas de espera que desesperam... Só por Deus!

A visão é sempre a mesma: uns, com sorte, alcançam alguma cadeira manca em que se refestelam exaustos da epopéia vencida entre a periferia e o coração da metrópole; alguns dormem; outros, fincados nos calcanhares, procuram um bico de prosa para fugirem à impaciência; lêem-se revistas, jornais; olhares se perdem no vazio das paredes “brancas”...

Então, sem maiores volteios, voltando ao nosso nosocômio, lembramos os tipos e, entre eles, dois rapazes, jovens; um nem tão jovem, mas moço ainda. Eles pareciam bastar-se em meio àquele recinto nosotragicômico. Um silêncio profundo os habitava; vez ou outra, entreolhavam-se, mãos dadas. O mais maduro, agachado, repousava sereno a cabeça no colo do novinho. Este o afagava os cabelos revoltos. Não se podia dizer-lhes belos. O maduro, mais másculo; o mais moço, levemente andrógino.

Curiosas impressões se tinham dos desassistidos presentes. Eram pessoas, por certo, estigmatizadas em sua maioria. Vítimas de preconceito, porque pobres, e pobre, desde sempre, é alvo comum de preconceito. Ali, pobres entre pobres. Um pouco mais de pretos do que brancos, porque os pretos, percebe-se, visitam mais essas repartições públicas, mas, no todo, ou na maioria, pobres.

Em meio às ocupações todas já citadas, em dado instante, parecia unânime um novo passatempo: fitar os rapazes. Observá-los em detalhes, em nuanças parecia a única atração no recinto. Como já se disse, não eram belos nem nada, eram rapazes, um mais jovem e outro mais maduro, mas absorviam uma atenção...

À medida que o tempo marchava, poucas pessoas se resolviam, nada de muito novo ocorria, o hall mais parecia inchar do que se aliviar, o calor não se apiedava nem as gentes se acalmavam, e o desconforto aumentando. Eram pernas partidas que chegavam, queimados, picados de bichos, de bala, convulsionados de drogas, acidentados, um e outro esfaqueado, estropiados de toda a sorte. Sorte?

Apesar do cenário que se renovava de enfermos, ou melhor, se avolumava, ainda os rapazes disputavam as atenções. Aquele olhar que os atava, as mãos que corriam os cabelos, a ternura, a cumplicidade, a intimidade de duas almas que se escoravam e se abrigavam das circunstâncias. Pouca diferença - ou quase nenhuma - lhes faziam os olhares inquisidores. Na verdade, sequer se apercebiam. Havia muito mais que lhes cobrasse a preocupação.

E na carona dos ventos que circulavam pela sala de espera, navegavam esparsos recortes de prosa:

- Que absurdo! Onde esse mundo vai parar?

- Nossa, chega a me dar nojo!

- Deviam-se respeitar mais os ambientes públicos.

- Isso aí é falta de porrada!

- Se é meu filho, ponho pra fora de casa...

Uma voz retumbante - porém reticente - estrangula os falares todos. A assistente social dirige-se aos presentes:

- Quem é filho de Dona Esperança?

Ambos os jovens se levantam num misto de apreensão e resignação.

Dona Esperança chegara ao ambulatório socorrida pelo serviço municipal de emergências, após uma queda acidental em proximidades de sua residência. Num surto epiléptico, desvalida de controle qualquer, projetara a cabeça ao passeio, sendo acudida pelos vizinhos.

- Vocês, por gentileza, me acompanhem!

Minutos após, ambos deixam a bolorenta saleta da funcionária em prantos...

- Não! Mãe, mãe, mãezinha!...

Abraçam-se, novamente, carinhosamente, fraternalmente...

Pela sala, permaneceram circulantes os recortes de prosa:

- Ai, que tristeza.

- Coitadinhos.

- Tende piedade, Senhor, desses vossos filhos!...

Éder de Araújo
Enviado por Éder de Araújo em 22/11/2009
Reeditado em 22/11/2009
Código do texto: T1938596
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