Underground

Apesar do poste de luz amarela e muito clara, as várias árvores por perto fazem poças de sombra, umas rendadas e esmaecidas, outras mais densas e profundas. Mas as sombras mais escuras que se destacam no canteiro, bem ao lado da caixa de concreto com tampa metálica, denunciam as três entradas da toca. Quando a noite já está bastante avançada e o movimento da rua desacelera e se esparsa, o primeiro focinho com bigodes arrepiados aponta tremelicante pela abertura e sonda o espaço em volta.

Qualquer ruído ou movimento eventual faz com que se recolha ligeiro -- num segundo está ali, no outro já desapareceu -- e só retorna bem depois que tudo se aquieta novamente. O instinto da furtividade só não é maior que o de buscar alimento. E é este último que o traz forçosamente à superfície.

Uma pequena cabeça, com as orelhas retraídas, surge logo atrás do focinho trêmulo. Uma pata se firma na borda e o movimento cessa em espera. Depois, outra pata agarra-se à beira da entrada e, logo após um ou dois segundos hesitantes, todo o corpo pequenino salta com agilidade e dispara para a sombra na borda do piso térreo do prédio. Aí estanca. Então fareja. Ora vira a cabecinha pra um lado, ora pro outro, e de repente dispara ziguezagueando entre as poças de sombra, estacando subitamente a cada investida.

A forma rombuda de uma goiaba espatifada na terra é o seu primeiro objetivo. Fareja com cuidado, ergue a cabeça e vasculha tudo em volta. Depois rói um bocadinho, usando as patinhas dianteiras com seus finos dedinhos e garras pra segurar a fruta, rói mais um pouquinho e, sem aviso, dispara novamente feito um raio, pra mergulhar e desaparecer em alguma sombra mais profunda.

Na lixeira ao canto do piso, um movimento farfalhante entre copos descartáveis, sacolas plásticas, embalagens de pizza, latinhas de refrigerante e papéis amassados, acusa seu novo paradeiro. Sofisticado? Começou pela fruta, pra depois ir à refeição principal. Basta o ruído de uma moto pra que o banquete animado se estanque. Espera... Minutos depois recomeça o frenesi da orgia em meio aos restos de comida, sem distinguir entre o que é alimento de fato e o que é papelão besuntado de molho, ketch-up e maionese. Todo o seu corpinho some dentro do copo de plástico, no fundo do qual encontra a sobra de um líquido irresistivelmente doce e melado. E, quando emerge de lá, seus pelinhos cinzentos estão arrepiados, duros e pegajosos no dorso curvado.

Terminado o jantar, desce cuidadosa e habilmente pelo tubo metálico da estrutura que fixa a lixeira no chão, mergulha novamente nas sombras e só reaparece ziguezagueando tempos depois já na calçada, à beira da pista, temerariamente sob o forte facho de luz amarela do poste. Estaca, com o corpo meio erguido, apoiando-se no fino e comprido rabo rosado, farejando o ar em intervalos curtos. Perscruta tudo à volta com os olhinhos brilhantes e os bigodes trêmulos. E mais uma vez dispara tão ligeiro que mal se pode ver a ponta de um rabo rosado e tosco desaparecendo ao mergulhar na sombra do meio-fio.

Depois de matar a fome de alimento, é muito provável que esteja em busca de saciar a outra fome. Estará indo à procura de uma fêmea jeitosinha e receptiva que o acolha no afã de se reproduzirem. E como se reproduzem!

Devem ultrapassar em muito a quantidade de seres humanos que habitam esta cidade, os quais, alheios e indiferentes, nem mesmo tomam conhecimento disso.

E, assim, a vida de ambas as espécies continua, cada qual com os seus negócios e fomes e misérias e instintos e prazeres, até que a morte as una sob a terra. Amém.

>ö<

Maria Iaci
Enviado por Maria Iaci em 20/11/2009
Reeditado em 20/11/2009
Código do texto: T1934030
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.