Eu, conto
Vejo uma caneta tinteiro e ela me inspira. Eu me sento à frente de umas folhas de papel, meio brancas, meio dobradas. Lá fora garoa baixinho e ouço uma brisa tão leve que faz os pingos planarem até a vidraça. É tarde e o relógio cansa na parede. Seus ponteiros descem e sobem tão vagarosos que tenho a impressão de vê-lo falhar por um segundo. Olho ao redor. O silêncio e a inércia me fazem pensar que o sono é meu. Na sala deserta um indolente resquício de luz fraqueja lá em cima. A casa alcança o auge da noite e na sua quietude as almas repousam. Os sofás de braços abertos, o tapete esparramado no chão, as paredes em alvo cochilo de pé na penumbra e as camas solteiras deitadas nos quartos. Uma delas dorme sozinha, de lençóis revoltos e cobertores jogados para o lado. Apenas sob aquela tremeluzente nesga amarela trabalham ainda, de cima da estante, os despertos da casa. Eu conto.
Os rabiscos saíam ainda meio tímidos. E eram de fato rabiscos: letras sob um rasurado que insistiam em bloquear o caminho das demais. Num lapso lembrei-me de mestre Romão e da nota que lhe travava a embalada. Não havia um estorvo que causasse aflições, mas uma agonia que lhe tirava o sono. Sei lá, os músicos às vezes têm dessas manias de perfeição, da composição virtuosa. Presto atenção no que escrevem. Parece que entram por um alçapão, de onde voltam mais tarde, dizendo “Heureca!” com cara de assombro. Escritores também são assim: eles se esquecem do mundo e viajam para dentro, metade razão, metade emoção e borrifam suas idéias sob a forma de palavras. E assim, tem gente de todo tipo: autores de todos os tipos e gerações que põem seus segredos no papel. Eu conto.
Houve uma vez em que as paredes ouviram pequenos lamentos. Os sofás embalaram nas fronhas uma mocinha frágil e colhida, sem agasalho, meio hesitante. Contaram que ela, magrinha de alma endurecida pelo peso de um abandono, chorava fininho como o chover que eu conto. Amanheceu de olho inchado e retrato na mão, que ficou no seu bolso ao seu levantar. Então se assustou com a realidade, sem se dar conta que o sobressalto vinha de dentro. Sua hostess acordava com um pum para o trabalho, exagerada que era, batendo a porta do chuveiro. Malcriada, dizia o batente. E ela, estátua do desgosto, desejava mesmo virar pedra de sabão. Mas um sabão diferente, que vira água de um banho só. Seu pensar, lento da manhã insone, congelou-se como ela debaixo do lustre. Pumba! Malcriada mesmo, respondeu a porta para o batente. A moça assustou. A vida é uma brincadeira, pensou. A gente se pauta na vida: na de alguém por amor e na nossa para aprender. E acaba aprendendo de tudo, inclusive a amar, mesmo que seja doído. Que triste controvérsia, escreveria depois, sofrer de paixão. Lá veio a hostess de novo, a passar por ela apressada, engoliu o café e bateu outra porta com um oi curto e seco; parou um instante, meio dentro, meio de saída, viu a coitada despenteada, de pijama e olheiras; disse umas parcas palavras e, pressentindo o pior no mundo afetivo da inquilina, saiu sorrindo amarelo e esfregando as mãos para o elevador. Coitadinha, pensou a parede ouvindo lamúrias.
Ouço barulhos lá fora que podem ser gatos fugindo do frio. Isso me faz lembrar que o planeta ainda gira. A luminária, cansada de trabalhar, está tombada para frente e agora há uma xícara esfumaçando na sua direção, acordada da prateleira. Os rabiscos seguiam sem contar uma história de amor nem falar de paixões arrebatadoras. Era uma coisa meio querente, meio insatisfeita, quase uma hesitação. A tal da aflição tornava insensível aquele coração puro de sentimento mas desgostoso das armadilhas do destino. Amaldiçoava os bancos de praça, os campos de flores silvestres e os piqueniques. O inverno passava amargando a solidão na lareira e as companhias que não eram as pretendidas. Nos fins-de-semana ficava aturando as garotas da sua idade atrás de marido. Um zás faz deitar a caneta e ouço um barulho de amassado.
Agora é minha vez, ouviu a parede assim que a hostess saiu. Vou me esticar na hidromassagem. Eu mereço. Então se foi a moça frágil e insone relaxar na água quentinha. Bastou se achegar no mármore do aparelho para sentir um incisivo conforto. A lembrança de colo e calor disparou na moça recém-solteira uma relevante e penosa angústia e ela pranteou o quanto pôde, faltou no trabalho e dormiu tarde afora. Acordou à noitinha, a cabeça girando, mensagens no celular. Ficou pensando onde estava, que dia que era, se era noite, se era madrugada. Sua tristeza veio embrulhar-lhe o estômago, ruidoso que estava, como uma prioridade. Então, de cabelo molhado, roupão enrolado e caneta na mão se pôs a escrever com ardente paixão. Esta sim era portentosa, cheia de intensidade e arrebatamento. Sua ternura era singular, suas palavras, calorosas. Contava que até então não vira amor igual. Os dias no parque, os piqueniques nos campos silvestres, o amor que faziam defronte a lareira, regado de tinto e promessas eternas. E seguia louvando as lembranças de quatro estações, indeléveis da sua memória. Seguia chorosa, copista da própria consternação. Ia declarando sua afeição na missiva, deixando o perdão para o final, onde o conto de fadas encontrara seu veneno. Causava-lhe espanto se dar conta do que afinal contaminara um romance que um dia fora imortal. Terminou de escrever, dobrou o papel e o beijou. E hesitou. Parou um instante e virou pedra de novo. Pedra de toque, pálida e desenganada, traída sobre os lençóis, por um cortante lembrete: suas tentativas de reconciliação, de tantas que foram, acabaram corroendo pouco a pouco as suas esperanças e esta, a sua última, virou num súbito um amassado no fundo do cesto, onde foi se juntar a bolinhas de rascunhos, embalagens de chocolate e lenços de papel.
Os gatos provavelmente encontraram abrigo. Na escura calada da noite apenas se ouvia o levantar e o sobrepor da tal xícara e os ruídos do tinteiro no papel. Havia corrosão no ar, ser traído e tal pelo amor da sua vida. Que maldição, escreveu ele, gostar de uma moça que gosta de outro. Aqueles passeios, os encontros, as nossas histórias. A paixão declarada, aquele abraço, aquele corpo perfeito, o seu sorriso conquistador, as juras para sempre de um amor sem igual. E de repente, pego de surpresa, logo ele, um partidão, aquela cena amarga que não parava de se repetir. Aquele ex-namorado, a lembrança do flagrante, o que tinha de estar ali? Logo ela, cujos olhos eram dele, cujos corações batiam como um só. Logo ela, apaixonada fanática, aparecer nos seus olhos nos braços de outro. O que foram aquelas noites na lareira? Será que um dia foi verdade? – perguntou por escrito. Que coisa intragável, escreveu e riscou. Ainda tinha a dúvida, saiu por impulso sem surpreender ninguém. Bastava-lhe aquela presença pretérita, um passado morto que ela jurava sepultado. E eis que chega de surpresa, antecipando a volta de uma viagem quis o destino pregar-lhe uma peça. Aquela cena horrenda que não pára de passar e lhe tira o sono: o desespero da moça, o sorriso malandro do ex-namorado, sem beijo nem nada e já sai gritando escadaria abaixo e rua afora, cantando pneu. Recusou-a até então, em suas tentativas de reconciliação. E essa dúvida pesava, a dúvida da traição. E escrevia e riscava, reescrevia e desistia da idéia. Lembrava-se daqueles lábios, das noites com ela e numa injustiça. Pensava e escrevia, rabiscava, jogava fora, passava a limpo e repensava no destino. Heureca! O destino! Decidiu que deixaria em suas mãos o futuro dos dois! Claro! Afinal, para o amor verdadeiro não dá tudo certo? E então, tarde da noite daquele jeito, o tal do rapaz me pegou pelo meio e me dobrou mais duas vezes. Enfiou-me num envelope e deve ter passado uma cola, porque eu ouvi o barulho da tampinha. Então eu fiquei por ali, sobre alguma estante do escritório. Apagou a luminária com um clic e pressenti que enfim se pusera a dormir em paz. Só então com um pouco de escuro pude jazer também.
De manhã ouço vozes do tal do rapaz. Ele parte atabalhoado me chacoalhando a tiracolo e mal entendo o que diz, porque mais boceja do que fala ao celular. Ele pára seu carro e desce me conduzindo, até que sinto o selo e o gelado da balança. Alguma mão desconhecida nos joga numa urna, onde trocamos histórias com centenas de cartas novas, cobranças, boletos e envelopes de todos os tipos e tamanhos. Havia histórias de todos os cantos, declarações de amor, cartas de saudades e me entristeci com algumas que ouvi. Ai que sono, disse ao envelope, passei esta noite em claro. É, eu soube, respondeu-me; eu acordei bem cedinho, dormi na gaveta, quentinho na embalagem. Aproveita para dormir um pouco na viagem, sugeriu-me, eu te aqueço e te faço sombra.
Aí eu apaguei. Só percebi que o grande momento chegara quando vi meu amigo sofrer os rasgos terríveis a que todos os envelopes estão sujeitos. Eu estranhei que a tal da mocinha não fosse nem delicada nem angelical, como os rascunhos do rapaz me diziam. Eu estranhei aquele olhar de atrevimento e notei maquiavelismo naquela moça rechonchuda e de cabelo vermelho. Duvido que ela fosse cheia de riquezas como eu tivera notícias. Para mim era uma atrevida, uma intrusa, invadindo a correspondência alheia. E, como se me descobrisse insultando a sua pessoa, amassou-me em três tempos, com raiva e tudo. Depois me atirou lixo adentro, onde fui me juntar com bolinhas de rascunho, embalagens de chocolate e lenços de papel. Tudo muito escuro, muito quieto e muito triste. Eu conto.
Foi neste cesto que eu conheci a carta da mocinha frágil, meio amassada, meio chorada. Em princípio fiquei meio calado, não conhecia ninguém e me olhavam meio torto, de tão embrulhado mal podia ser lido. Daí percebi quem ela era e, parada caprichosa bem embaixo de mim, começamos a conversar. Ela me contou da aflição da sua autora, uma moça linda de olhar conquistador, de mãos macias que escrevia coisas tão calorosas e depois palpitava entristecida. Falou de umas tentativas de reconciliação que deram em nada. Ela mesma era testemunha de uma pungente desistência: a moça cansara de tentar se explicar. Hei, disse-lhe, eu sou uma carta de reconciliação! O tal do rapaz mandou-me dizer sobre os seus sentimentos! Ainda gosta dela, mas acha que foi traído. Ele não tem certeza, mas chegou num domingo e viu a moça de papo na sala com um ex-namorado que ele odiava. Hei, ouviu-se de lá de fora do lixo, que traição que nada! Eu estava aqui neste domingo, disseram os alto-falantes. É mesmo? Conta, exclamei. Eu também estava, disse a televisão, eu vi o que houve. Primeiro chegou um rapaz, e a moça, meio sem jeito porque é educada, foi logo dizendo oi, como vai. E ele abelhudo foi logo sentando sem ser convidado, relatou o sofá. É, foi isso mesmo que aconteceu, assentiram as cortinas. Depois chegou o rapaz de quem a moça gostava, o namorado dela, continuou o sofá, e a moça se levantou correndo para ir atrás dele e só voltou mais tarde chorando que nem criança. Olha, disse o dvd, eu já contei muitas histórias, mas como essa eu nunca vi. Coitada da menina, lamentou o sofá, passou a noite em prantos em cima de mim. Hei, disse o telefone, o ex-namorado da moça não veio sem ser convidado. A hostess me usou para traze-lo para cá neste dia, continuou; ela ligou da extensão, falando para ele vir com urgência. Que desgraçada, indignou-se a vidraça, eu não pude ver porque as cortinas estavam na minha frente, mas só agora eu entendi por que ela ligou, chamando o ex-namorado da moça!
Foi assim que descobrimos a tramóia da hostess. O telefone acabou nos contando que ouvia as suas conversas e entregou sua inveja da moça, tão terna e tão bela, tão meiga e singela, bem amada e feliz que era ela. Por pura maldade estava rompendo um conto de fadas. Que maquiavélica!
Os dias se passaram e fomos descobrindo novas intrigas. O dvd ficou muito surpreso com toda esta história e contou que ela daria um belo de um filme. A televisão consentiu e, naquela altura, todos nós por ali já lamentávamos pela moça traída. Víamos outras de suas tentativas, sentava-se à mesa mas lhe faltava coragem e lhe faltavam esperanças. Sentava-se magoada e tentava escrever, mas depois desistia. E todos nós numa enorme torcida para ela se dar conta do que lhe sucedia. De dentro do cesto, eu só ouvia um pequeno chorinho. De repente, vi um rosto aparecer por cima da gente lá embaixo no cesto. Era o rosto mais lindo que vira, um olhar tão triste mas brando, uma boca tão linda: era a moça do rapaz! Estava bem ali, diante de nós, à procura do que já tinha escrito, numa nova esperança. Alçou suas mãos por dentro do cesto e tratou de procurar aquela carta que um dia escrevera. Foi revirando os papéis e até fiquei meio tonto das cambalhotas que eu dei. E, estranhando a minha presença, ela então me descobriu. Desamassou-me e eu enfim lhe contei o que me fora incumbido. Foi uma revelação. Houve briga com a hostess e o que se seguiu foi um auê. Mas uma coisa é certa: ela e o rapaz foram felizes para sempre.