A cartomante
A moça vai embora satisfeita. Tem um brilho no belo par de olhos, verdes e vívidos; é madura, ainda que esteja às portas da adultidade. Rapaz claro. Boa notícia. Dinheiro grande. Nos meses vindouros teria fartura. Ela chega em casa de um trânsito infernal. Estirada no sofá, de cabelo molhado e roupão, ela telefona para o amigo. Diz-lhe sobre as previsões da cartomante, uma promoção e uma imprevisível dinheirama ainda para aquele ano. E o melhor: um homem, jovem e de pele clara entraria na sua vida, fisgando o seu coração. Ela agradece a indicação. A leitora lhe pareceu confiável e a sua visita rendera otimismo e esperança.
O amigo é um sujeito benevolente. Muito sociável, cortês no trato, fino, educado. Desses que sempre oferecem auxílio. Esta sua conhecida estava aflita, indecisa entre a estabilidade no atual ou a ousadia num novo emprego. Tinha questões perturbantes a resolver e precisava de uma ajuda “assim, meio diferente”. Ele então recomendara a adivinha, leitora de tarô egípcio, com fama de boa, rosto comprido e chapéu conoidal.
Era uma boa pessoa. Tinha recheada a sua bagagem, a sexagenária. Tinha mesmo semblante de bruxa, um olhar invasivo, aquilino, fixo. Boa pessoa, dizia, a gente conhece olho no olho. No ócio gargalhava e contava piada como gente normal, mas diante das cartas baixava a magia e ela vingava, com sua voz solene, os mistérios da vida.
Os dois se freqüentavam. Conheceram-se pela esposa, uma cliente agradável e contumaz. O rapaz apreciava as suas histórias, sobretudo a sua sabedoria. Viviam debatendo temas diversos, mas discutiam essencialmente os descaminhos da raça, gente malvada, com pedidos estranhos ou maquiavélicos que ela naturalmente rejeitava. A companhia do rapaz por sua vez era divertida para a senhora. Apetecia-lhe as conversas mitigantes que entabulavam em alguns finais de tarde, ora de passagem, ora com a mulher. A constância da amizade permanecia expressiva na memória do rapaz e ele indicava a sapiência da feiticeira a todos os queixosos que conhecia.
Cuidado com uma mulher clara, de meia idade, no seu trabalho, disse uma vez para uma consulente. Ela vai querer puxar o seu tapete. Talvez por inveja; é bom se precaver. Tem um rapaz claro no seu caminho que vai te trazer uma notícia boa. Você sabe quem é? -perguntou à moça.. Ela se assanhou de feliz, tamborilando os dedos. Bem sabia quem era, a rapariga. Há tempos desejava a fortuna que previa a consulta. Foi embora empertigada com a novidade reservada.
A cartomante era muito intuitiva. Era procurada por sua sensibilidade fora do comum, interpretando muitas vezes o que as cartas não diziam. Conhecia a fundo alguns segredos da alma humana, mas tinha lá os mistérios que teimavam em se manter incógnitos, por mais que procurasse saber.
Mesmo de reputação irretocável, as figuras petulantes da cidade não deixavam de tentá-la com propostas indignas e cruéis, mas ela se mantinha irredutível contra a prática do desonesto e na insistência da requerente virava o maldito em pessoa, praguejando mil imprecações.
Um dia sentou-se à sua mesa uma pretensa janota, de bolsa cara e anéis nos dedos. Sacou a vidente problemas pela frente, aquele olhar manhoso, jeito esquivo e arrogância. A cartomante foi afinando o palavrório; conhecia bem o tipo. Foi dando corda para a moça, de início meio hesitante. Mas pouco a pouco ela foi emendando uma idéia na outra e o cenário desagradou a leitora. Era a foto do rapaz, seu amigo, que ela tinha nas mãos, rogando-lhe a magia de conquista. Em três tempos tocou a insolente às vassouradas. Que desplante, um homem casado, sério e honrado!
Ao amigo não se atreveu a narrar o episódio por receio do constrangimento. Ela mantinha confidência inquebrantável das suas conversas e, de tantas que eram, achava graça das coincidências que cortavam o seu baralho: a ex-esposa que teria o marido de volta, o ex-marido que voltaria para a esposa, o jovem que conheceria uma moça, uma garota que se apaixonaria por um rapaz. Por um instante pensou que todos eles combinavam de visitá-la em segredo.
Mas não deixou de notar que todas as moças que o rapaz indicava descobriam o valete de copas de seus baralhos. Era uma inegável coincidência: ele, um moço todo claro; a pele, os cabelos castanhos, os olhos verdes. A personificação do conde vermelho. Uma curiosa obra do acaso, pensou a vidente, recusando-se a levantar suspeitas do amigo.
Bastou que uma nova recomendação surgisse à sua sala. Nova jovem, novo corte, o mesmo valete. E a cartomante suspeitou, enfim, da fidelidade conjugal do camarada. A moça não quis contar do jovem claro que aparecia nas cartas e nem com rodeios a bruxa descobriu. Mas, intuitiva que era, sabia que alguma coisa estava errada.
As suspeitas sobre ele aumentaram quando suas visitas se escassearam, talvez causadas pelas interrogativas da feiticeira à última amiga que ele indicara. E se reforçaram de vez quando, em uma das suas freqüentes consultas, apareceram nas cartas da esposa as moças que tinham aparecido na sua mesa. A taróloga resolveu desconversar e escondeu as suspeitas da jovem. Poderia estar enganada; toda a simpatia do amigo talvez atraísse a inveja das solteiras e não havia indícios de casos extraconjugais no corte da esposa, apenas damas vermelhas e algumas pretensões.
Aí a cartomante amenizou sua suspeição. Um rapaz tão correto, bom moço, trabalhador, esperto. As conhecidas até poderiam tentar alguma coisa, mas era muito afeito à jovem com a qual se casara. Como pôde desconfiar dele, seu amigo freqüente, companhia agradável? Que tola tinha sido, investigando o conde da consulente! Ainda mais quando se encontrou com ela, namorando que estava, de mãos dadas na rua, um rapaz clarinho e castanho, tão valete de copas quanto o amigo que condenara!
Sentiu-se malvada e precipitada, julgando uma pessoa tão querida pelas forças das circunstâncias. Decidiu revitalizar a amizade até então sob uma névoa dissidente, telefonando para o casal com o argumento de um churrasco fraternal. A esposa, atendendo a ligação, informa-lhe sobre a separação dos dois. O motivo? Adultério.