O caminho de Guermantes

Guermantes é um motorista zeloso. Adquiriu a consciência de sê-lo por todas as dezenas de anos em que esteve em exercício. No princípio era mesmo mais impulsivo, mas os sustos que o acometeram na rotina do asfalto ensinaram-lhe a prudência e a responsabilidade.

Desde então veio se esmerando na arte de dirigir e ao longo da sua história ele se viu nas desatinadas temeridades que os insensatos cometiam. Percebeu como arriscavam a vida de si mesmos ou atentavam contra o direito das pessoas por estarem nos seus caminhos. Lamentou ter sido parecido, a bordo da sua potência em plena cidade.

Agora, um senhor respeitável, ele se vangloria da volta por cima, ainda na juventude, quando compreendeu os perigos das manobras intempestivas. Abandonara então a imprudência para se tornar um primoroso motorista.

Condutor por excelência, vem chegando ao fim da sua jornada. Está se lembrando das suas andanças. Vai suspirando pelo percurso a satisfação de uma boa vida e se compraz das suas memórias. Está na pista cauteloso, seguindo lentamente, observando o movimento, os automóveis que passavam, a paisagem à sua volta. Vê pelo espelho as marcas do passado e sente orgulho dos frutos que colheu. A consideração o acompanha no roteiro e ela se presta a noticiá-lo sobre a performance dos motoristas que dividem a estrada com ele. Está compenetrado, embutido no seu veículo a meditar com a propriedade de um veterano.

Vagaroso, talvez pelo trânsito intenso, que exige sua atenção redobrada, Guermantes deixa a liberdade soprar-lhe o rosto e lhe desgrenhar os parcos cabelos. É uma pista larga, ainda que irregular: esburacada em alguns pontos, perfeita em outros. Seu veículo é antigo mas ele aprendeu a tratá-lo com o correto cuidado. Bem se lembrava dos tempos lá atrás, quando lhe judiava a estrutura: por ignorância, por falta de carinho ou por imoderação. Isso entristecia e aliviava ao mesmo tempo: causavam dores pelo excesso, mas refrigério pela superação.

O senhor vê passar por ele um piloto bem novo. Passa à desfilada, cortando à sua frente, pela esquerda e pela direita, os veículos lentos em fila. Passa por um instante que é aquele jovem, com olhar malicioso e jeito arrogante. Passa com o pecado do desrespeito, sem se importar com as mulheres, pais e com as crianças que põe em perigo com o desatino das suas manobras. O senhor prevê um futuro difícil para aquele célere dirigente: mais dia, menos dia a vida lhe ensinaria a deferência e a temperança. Do seu íntimo, desejou que o jovem aprendesse como ele: o quanto antes, a fim de que mantivesse intacta a própria integridade. E de quem lhe aparecesse pela frente.

Em certo ponto o tráfego diminui e ele percorre quase sozinho um trecho complicado. É desconhecido para ele e este é um fator preocupante. Não consta no guia e tem medo de se perder. A sua estrela é a sensatez, virtude a qual nunca o abandonou. Decide-se pela intuição quando a estrada encruzilha e se vê em terras conhecidas quando menos espera.

Uma bela jovem tem o carro parado adiante e o senhor, prestimoso, achega-se à acostagem para socorrê-la. Ela lhe diz que o problema é a displicência: a falta de diligência com o seu veículo deixou-a na mão. Sabia dos problemas que ele trazia, mas mesmo assim resolveu empreender viagem. Como fruto, colhia o veneno da própria irresponsabilidade. Ela e o filho aceitam o seu pedido e os três viajam juntos.

Dão-se muito bem. O filho é inteligente, tem bons princípios, interessado, simpático. A moça transmitiu para ele o caráter que era dela. Vão seguir juntos um bom pedaço, até o jovem descer no seu destino. A mãe continua com ele e muitas cidades se passam. Criam laços muito fraternos pois têm muitos pontos em comum. Distinguem em alguns aspectos, mas passam juntos por muitos milhas. Enfim chega também ela ao seu destino e o senhor se mete com a sua vida de novo.

Entristecido, Guermantes é um solitário. A isolação dá-lhe a sensibilidade que os motoristas não têm. Ele sente a aflição dos carros que passam voando por ele como se esperasse pelo pior. São meninos, cujas cartas ainda estão verdes. E o pior: crianças sem habilitação manobram suas sandices sob a égide dos pais. Do alto da sua experiência, o ancião sofre a visão do próprio vaticínio: passa por um desastre lancinante, sanguinolento e pavoroso. Um pai carrega no colo a criança acidentada e na consciência uma culpa irrevogável.

O acidente é tão doloroso para ele que é tão cuidadoso que tem a impressão da virtude ser-lhe uma maldição: passara a vida inteira testemunhando histórias de todas as naturezas: dos culpados, das vítimas, acidentes de todas as grandezas, dimensões e conseqüências. Soube de casos dos mais diversos no seu caminho: gente acostada por falta de vergonha na cara, gente imperiosa e apressada que encontrava o seu destino numa nociva auto-afirmação, gente sonolenta ao volante que fazia na estrada o que não tinha tempo para fazer à noite, gente que fazia à noite o que não devia e caía embriagado no buraco negro da vida. Vê de tudo no percurso para casa e entende o caminho com a clareza de um decano. Observa os mais rápidos e os mais vagarosos, o excesso de velocidade e o excesso de zelo. Às vezes também a lentidão causava transtornos. Como trafegasse pela pista do meio, interpunha-se entre o peso da morosidade e leviandade da rapidez. Assim, aprendeu a ser moderado para tudo na vida, com o ensinamento que a quilometragem lhe rendeu.

E ali, por entre as montanhas da vida, tendo escalado e descido, passado por túneis, buracos, bifurcações, chuvas, deslizes, quebras, consertos, remendos; passado por cima de pontes, viadutos e tantas outras coisas, o velho se sentiu cansado. Suas lições começaram a se repetir e ele se viu um aluno formado. Seu corpo doía o crepúsculo da viagem e a sua mente exigia-lhe o descanso merecido. E então, já meio falho, o motor de Guermantes para de funcionar.

Paulo Sartoran
Enviado por Paulo Sartoran em 18/11/2009
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