Os miseráveis

Como doía aquela miséria. Como pesava no seu coração a leveza dos seus bolsos. Aquela realidade acachapante, que limitava seu jeito de ser. Aquele desemprego inoportuno, no auge da sua mocidade. Eram tempos de crise, um contexto sem precedentes na história da classe trabalhadora. Como de costume, uma minoria absoluta se gabava dos seus privilégios enquanto uma imensidão de operários sofria a derrocada da economia. No meio termo encontrava-se um quase adulto, um mais que rapaz solitário no seu quarto-e-sala, vivendo na dificuldade que a vida lhe jogara. Não que amaldiçoasse o seu teto e os seus pertences, mas o dinheiro lhe faltava para ser quem gostaria.

Vivia de biscates ali por perto e sonhava com grandes somas para se livrar daquele incômodo. Seus rendimentos mal somavam as despesas e não conseguia investir em si mesmo como pretendia. Queria era escrever, publicar o seu livro, para que todos pudessem compartilhar com ele das suas idéias, das poesias que afloravam na sua solidão.

Pelas palavras doces conquistara a simpatia das moças da redondeza, com as quais mantinha um fino relacionamento. Não era nem rico nem pobre, apenas um sobrevivente. No dia-a-dia tentava novos negócios mas a falta de refinada instrução lhe atravancava o progresso. Então se via preso num ciclo sem surpresas, sofrendo do desânimo humano. Procurava as donzelas com as quais se consolava e, diante dos seus acolhimentos, metia-se com seus poemas a reconhecer-lhes a bondade.

Tinha impulsos de dar-lhes mais do que palavras, mas moedas não tinha que lhes dessem passeios ou objetos de valor. Padecia com a gentileza das moçoilas, hospitaleiras e presenteadoras. Sua companhia lhe rendia jantares, perfumes, peças de roupas e privilégios diversos. E ele, em vez de se regalar com as dádivas, abatia-se por modesta retribuição. Como doía não lhes darem colares de pérolas, vestidos de seda e sapatos finos! Pobre dele! E podia ser, mesmo. Mas não admitia ser aproveitador. Como doía aquela miséria, aquela realidade tão dura com ele.

Em dado momento decide se aventurar pelo comércio, oferecer-se por mais estudo ou por mais trabalho, mas não encontra nada compensatório. Trabalhar por instrução não podia a troco de ser expulso do apartamento. Estudar gratuitamente não era possível por que não entrava nas faculdades. Daí foi sucumbindo ao desalento e adoeceu. Vieram as moças ao seu socorro, deram-lhe medicamentos e esperança. Injetaram-lhe ânimo e lhe fizeram companhia, todo este tempo. Foi uma época penosa, viveu às custas de favores e conheceu bem o valor da solidariedade.

Na saúde voltou a trabalhar com todo empenho e conseguiu uma pequena bonificação. Tratou de destiná-la à recompensa, levando flores às benemerentes que lhe acudiram na doença. Conseguiu outra promoção: a de conceito. Passou a ser visto como alguém de valor.

Mesmo assim, sentia o pesar da vida parca. Recebia um telefonema mas não podia exagerar na ligação de volta sob a ameaça de cobertor curto: alongasse que fosse a sua conversa, faltaria dinheiro para pagar outras dívidas. E era uma ameaça constante, aquela. Não podia se demorar ao telefone, não recebia ligações a cobrar e interurbano então, nem pensar. Nas suas visitas levava um presente baratinho mas de coração. Com os amigos bebia da barata e não deixava que lhe pagasse a parte com medo da má fama. Nas reuniões mais abastadas ele se recluía no próprio isolamento.

O tempo foi passando e ele estudando os livros que tinha lá. Foi tomando gosto pela coisa, seus companheiros de todas as horas. Foi compreendendo um pouco da vida e a essência que é a do homem. Recebia as amigas na sua casa e, se antes sentia vergonha, aprendeu a dizer que aquele era ele, aquele sofá meio simples, o ambiente meio antigo e desbotado, eram ele, assim meio modesto. Aquela franqueza era demais para elas e ele passou a ser venerado. Tantos ricos diziam o que não tinham e ele dizia que não tinha o que elas viam: riqueza. Mas era uma riqueza diferente, era a do espírito. Sempre fora cavalheiro, gentil, batalhador. Elas só não entendiam como ele não era descoberto, um homem daqueles, valoroso, humano.

Mas tal qual o seu renome, seus estudos perpetuaram. Suas loas à vida repercutiram na cidade e os figurões quiseram saber dos autores daqueles veneráveis pragmatismos que chegavam aos seus ouvidos. Eram palavras de otimismo que impregnavam nas jovens, nas moças e suas irmãs, que serviam de incentivo para os seus problemas e seus temores. E elas se mostravam aguilhoadas na vida pelo exemplo que tinha um endereço certo: aquele quarto-e-sala num bairro afastado da cidade, no entorno dos mais afortunados.

De lá é que vinha o otimismo, o modelo de esperança e sobretudo, de lá é que vinham as poesias. Um construir tão singelo entre frases, rimas e sentimentos que se tornava um presente de leitura. Eram palavras maduras, calcadas nas noites de reclusão e nas horas de solitária companhia dos literatos. E quanto eles o ensinaram!

À sua presença, os figurões trataram de seus textos. Deram-lhe votos de confiança e uma oportunidade de ouro para mostrar seu talento. Trouxeram as câmeras de televisão e os repórteres empunhados, ao vivo da cidade. O poeta então entonou o seu escasso e provou para tudo e todos o valor da sua conduta. A emissora ali presente levou sua história das lentes para o país e o homem ficou conhecido por todos os cantos. Viajou cidade afora entoando as suas rimas e transmitindo os seus princípios. Serviu de exemplo para vaidosos e pedantes, miseráveis e bem providos. Fascinou milhares de almas pelo país que se prestaram a escrever como ele, poemas da vida, da luta e da volta por cima.

Ganhou notoriedade e viu baterem às suas portas oportunidades atrás das outras. Aceitou uma delas e se mudou para a capital, uma casa grande com churrasqueira e piscina, chafariz, escritório, biblioteca e garagem para um carro novo.

Assim instalado, a sua primeira poesia foi levar colares de pérola, vestidos de seda e sapatos finos para as suas donzelas na cidade pequena.

Paulo Sartoran
Enviado por Paulo Sartoran em 17/11/2009
Código do texto: T1929351