O idiota

– Será que você poderia me ajudar? -pergunta alguém.

– Claro. Em que posso ser útil? -respondeu o rapaz.

Essa oferenda era comum na vida dele. Não existia limites. Questões complexas e de alta dificuldade eram simplesmente sorrisos aos lamuriosos. Talvez fosse uma necessidade exposta de protuberante caridade, onde as evasivas e as negações eram um martírio pungente demais para ser anotado no seu histórico.

O rapaz era destes que se comprometia com esforços que não eram os dele e passava seus momentos de liberdade trancafiado nas demandas dos outros. Na verdade se regalava na utilidade das suas ações como se prestasse um serviço para a humanidade. A vida toda ouvira sobre a benemerência, ajudar o próximo, emprestar ao pobre, amar uns aos outros. Aquilo era território sacrossanto para ele, um princípio em princípio inviolável.

Habituou-se à cortesia e de bom grado oferecia a sua saúde e inteligência para a resolução das dificuldades e queixumes dos colegas de classe. Diante dos entreolhares de surpresa, o rapaz vinha sendo eleito o mais querido da turma, quando todos se agrupavam à sua volta em tarefas coletivas. Achava estranho que no recreio se sentisse sozinho, mas em trabalhos em grupo era o maioral.

Cresceu comprando cigarros para os primos, ervilha para a mãe, buscava o jornal na banca e pãezinhos para a tia. Era sempre o escolhido nestas situações. Quando tinha algo a dizer era sempre relegado, mas talvez por que os adultos é que sabiam o que falavam. Passou a infância emprestando os seus brinquedos para as outras crianças e no escorregador era o último da fila por que ele dava lugar para os apressados.

Assim, na juventude, ele continuou a dar passagem e se especializou em favores de todos os tipos, tamanhos e complexidades. Se acontecessem dois pedidos ao mesmo tempo, o jovem se apegava ao mais importante: ensinar matemática à colega de classe era mais urgente do que completar o time do bairro. Aliás, a palavra da mãe era inquestionável: primeiro as obrigações, depois o divertimento. Como de costume, ele obedecia sem ressalvar.

Com o passar do tempo ele foi entendendo os favores. Achava curioso que de tantos esforços poucos agradecimentos recebia em troca. Mas tinha aprendido que deveria sempre se entregar às causas do próximo sem esperar compensação. Por esta razão não se incomodava nem com a falta de um singelo obrigado. Vivia vinculando a sua à vida dos colegas e amigos, conhecidos e parentes como se fosse um chipanzé pulante, de galho em galho na contenda alheia.

Satisfação maior do que aquela não existia. Era bom filho, bom amigo e bom samaritano. Vivia requisitado por todos os cantos e dia não passava sem que lhe solicitassem obséquios. Tanto entendeu do riscado que organizava uma rotina para não ser injusto com ninguém.

Na realidade, se tivesse mesmo alguma afeição de alguém era de seus defensores, alguns professores ou pessoas próximas que já se cansavam dos abusos contra ele. Em episódios de triste falsidade, puxavam o rapaz para um canto e lhe contavam sobre a ingenuidade e sobre os sanguessugas da vida. Mas o rapaz se mostrava contrafeito; feliz que estava, estendendo as mãos aos semelhantes. Além do mais, a vontade de ajudar era dele, como também os desafios e problemas que gostava de resolver por iniciativa própria. Diante de repetidas argumentações, seus defendentes desistiram da questão e os ludibriantes nadaram às braçadas.

Foi quando conheceu o amor que a sua vida mudou. Ele se manteve o mesmo, apenas apaixonado. Estranhou que aquela moça do bairro jamais lhe rogasse uma súplica. Pelo contrário, ela apenas se espantava com alguns pedidos que as pessoas faziam para ele. O moço se lembrava de uma vez, quando a jovem lhe dirigiu a palavra, perguntando por aquela veleidade de cumprir as ordens de terceiros. Então ele sorriu, explicando que crescera no caminho benfazejo, procurando atender a tudo e a todos com toda atenção.

Agora ela reaparecia na sua vida, ex-colega de classe, que seguira a carreira profissional e se tornara uma psicóloga de marca maior. Criou laços profundos com a moça e, nas suas conversas, os dois se afeiçoaram. Do seu emprego ligava para ela e à noite, horas a fio, dedicavam-se a discussões de todos os calibres. Ela se transformou na sua maior favorecida, evitando que os enganadores tomassem o seu tempo. O rapaz ainda se dedicava à peleja alheia, deixando inclusive de visitá-la, mas agradar a moça se tornou mais importante do que tudo e ela aproveitou os preciosos instantes com ele.

Ele então compreendeu que fora injusto com as próprias vontades, deixara de se aplicar aos próprios objetivos e relegara até quase a adultidade os tempos que tinha para si mesmo, para deleite da sua vida, para passear, para se divertir, para praticar esportes, sair, ser livre; delícias as quais abrira mão para dedicação exclusiva do próximo.

Não que lhe fosse proibido prestar seus auxílios, mas como diz em Eclesiastes 3, 1-8, há um momento para tudo e um tempo para todo propósito debaixo do céu: tempo de nascer e morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar a planta; tempo de matar e de curar; chorar e rir; destruir e construir, de gemer e de bailar, de atirar e recolher pedras, de abraçar e de separar, de guardar e de jogar fora, de rasgar e costurar, de calar e de falar, de amar e de odiar, de guerra e de paz e de buscar tempo e perder tempo. E o jovem chorou. Chorou o entendimento, a raiva, o desprezo, o tempo perdido.

E a moça chorou com ele, uma vida inteira dedicada ao próximo, sem pestanejar. Chorou pelo bem que tinha feito. Feito compreender aquele ingênuo, doce e cândido, disposto por outros. Feito descobrir seu lado intocado, o lado de si mesmo, dos próprios desejos, do próprio ordenar. Chorou por trazer ao rapaz aquele grande benefício. Ou malefício.

Pouco tempo depois, ela vai ouvi-lo dizer:

– Você pode me ajudar? -perguntou o jovem.

– Claro. Em que posso ser útil? -respondeu alguém.

Paulo Sartoran
Enviado por Paulo Sartoran em 17/11/2009
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