O DVD

O Samuca tinha ido ao mercadinho comprar umas coisinhas pra avó. Depois de uma não pequena pesquisa de preço, já que estava com o dinheiro regrado, conseguiu comprar tudo o que dona Joana lhe havia solicitado. Cenoura, brócolis, beterraba, batata... tudo. Valeu o esforço de pechinchar nas barracas. Era o mínimo que podia fazer àquela que lhe acolhera em casa durante três dias. “Bem agora é ir para casa que a minha viagem é às 10", pensou Samuca. Num gesto rápido, olhou para o relógio e viu que ainda era 7:46 am. Estava cedo, não deveria ficar tão preocupado. Como que absorto na contemplação daquele zunzum e movimentação célere das pessoas, deixou-se caminhar calmamente por entre elas.

Com as sacolas em punho, encostou numa barraca de dvd pirata. Estava tão sortida que poderia encontrar uns filmes que sempre quisera e nunca os achara em barraca alguma. Tinha, porém, certo sentimentozinho de medo em comprar dvds pirateados; temia contribuir com o tráfico de drogas, bandidagem, essas coisas. Mas que fazer? Os originais são tão caros! Samuca ficou olhando as capas, irresoluto no que iria levar. Gostava um pouco disso, desse negócio de olhar tudo na esperança de que um lhe agradasse mais que os outros e ter a sensação de que valera a pena procurá-lo. Não tinha nada em mente... até que viu a seção de filmes pornográficos. Lembrou-se que não tinha nenhum novo e o último já abusara. Sentiu que era preciso “tocar uma bronha”, “dar uma coça na miúda” ou, como dizem alguns alunos nos seminários, “praticar o vício solitário” com um estimulo novo. Percorreu com os olhos os títulos exóticos dos filmes. Olhava-os, porém, de esguelha, com medo que os outros olheiros o notassem procurando esse tipo de filme. Procurou identificar o dono da barraca. "É homem, ainda bem, dá menos vergonha", refletiu consigo. Após um tempo, foi diminuindo o fluxo de gente ali; foi nesse momento que fez menção em pegar um Brasileirinhas. Ficou só no movimento, tirou rápido a mão de cima quando viu uma senhora do seu lado, procurando um dvd com música evangélica. Quando ela saiu, tencionou concretizar ação, mas um outro título lhe chamou a atenção: As Super - Dotadas. Notou que a capa era um tanto discreta, mas lhe despertava mais o sex appeal. Pegou-o, tirou o dinheiro do bolso e pagou o vendedor. Como a capa era um saco plástico, colocou o filme no bolso e foi embora. Daí a dez minutos de caminhada chega na casa da avó com as compras. Eram 8:30 am. Samuca ainda precisava ir à casa do Zeca pegar um esqueite que havia lhe emprestado. Contudo, não foi logo; como estivesse só na sala e a avó na cozinha e a prima Luísa no quarto, resolveu testar o dvd que havia comprado. Desconfiado, olhando de um lado pro outro, com uma alegriazinha sensual provinda daquele clima de proibição e libido, ligou a televisão e o aparelho de dvd e pôs o filme pra rodar. Samuca, segurando um controle em cada mão, parecia um policial apontando um revólver pra um bandido e atento a todos os seus movimentos. O filme inicia.

Poucos segundos se passam quando, súbito, escuta uma porta se abrindo: é Luísa saindo do quarto. Não pensa duas vezes e zap, desliga tudo. Não viu nada além dos créditos iniciais e o nome das patrocinadoras. Com o coração aos pulos levanta-se devagar do sofá, anda um pouco e constata o vulto da prima entrando na cozinha. "Ufa", suspira aliviado. Depressa, aponta de novo o controle do dvd pra retirar o filme. Sem resultado. Aperta desesperadamente o botão on e nada. "Que droga, justo agora essas pilhas inventam de não funcionar". Tira a capinha que as resguarda e começa a esfregá-las nervosamente.

- Não é problema das pilhas não Samuca, é que faltou energia - diz Luísa, acabando de chegar na sala.

- Como? Faltou energia?

- É. Tava na cozinha e a vó foi ligar o liquidificador e ele não ligou.

- Não pode ser!

Samuca correu até o botão de ligar a luz da sala e clicou várias vezes: Em vão. Começou a ficar nervoso, a praguejar contra a companhia elétrica. Instintivamente consultou o relógio: 8:50 am. Ainda era pra ir à casa do Zeca, mas não podia deixar a sala sem tirar o filme do dvd. Sabia que Luísa sempre assistia de manhã um show musical; se ele saísse e a energia chegasse, ela, ligando o aparelho, veria o maldito disco lá dentro e as chances de que ela não olhasse o conteúdo dele não era zero, era menos dez. Pensando nisso, começou a imaginar a situação desagradável que iria causar. A prima lhe olharia com asco e diria “Aí está TEU DVD". Um clima tenso se instauraria entre ambos e na cabeça dela ele ficaria com a imagem de depravado. O jeito era então esperar mais um pouco. O relógio marcava 9:00 am. Andou pela casa toda, nervoso. Olhou de novo o relógio, pensando ter passado meia hora: não, 9:03 am. Uma comiseração tomou-lhe conta. A avó, vendo o estado de aflição em que o neto se achava, disse:

- Não adianta preocupar-se, filho, vai custar um pouco chegar a energia.

- O problema é no bairro todo?

- Não, nestes últimos dias isso só está acontecendo nesta rua.

“Nesta rua”. A energia não chegou, mas Samuca teve uma luz (desculpe o leitor essa piada infame). Bem, se a queda da energia só ocorreu na rua da avó, então nas outras haveria de ter energia; e, com certeza, a rua do Zeca era uma delas. Já que precisava ir à fina flor lá, levaria consigo o aparelho, tiraria o dvd de dentro, pegaria o esqueite, tudo rapidamente para não perder a viagem. Mas o que iria dizer à avó?

- Vó... vô na casa do Zeca... mas eu tenho que levar o aparelho de dvd da senhora...

- Oxe... por que você vai levar?

- É que o Zeca precisa me mostrar um vídeo antes de eu viajar... e na casa dele não tem aparelho.

- Tá bom, mas ver se toma cuidado com ele, viu?

- Viu.

Samuca foi até a estante, desconectou os cabos do aparelho que estavam plugados na televisão e colocou-os no bolso. Pegou o aparelho, colocou-o debaixo do braço, rumou para a bicicleta e debandou para a rua. Ia voando, ia refletindo, porém, na burrada que fez quando comprou o filme. "Droga de filmes, se eu soubesse... Acho que não os vou comprar mais. Pra quê? A gente empedra, espirra, e tira o filme logo, abusado de ver as mesmas ações." Assim pensava enquanto comia as ruas. Dobra uma esquina, outra. Avista a casa do Zeca e depois já está na frente dela.

- Oi, dona Raquel, o Zeca tá aí?

-Tá sim; ZEEECA!

- Que é? - responde do final do corredor.

- É o Samuca!

Zeca atravessa o corredor de esqueite e chega na porta.

- E aí, parceiro, entra aí...

Samuca, depois de estacionar a bicicleta, entra como um trovão. Não é preciso nem perguntar pela energia, o irmãozinho do Zeca estava assistindo o pato Donald. "Graças a Deus".

- Ah, Samuca, eu quero...

-Pera, Zeca, eu preciso que você faça um favor pra mim, é caso urgente.

- O que é...?

- Eu preciso testar esse dvd aqui na tua casa.

- Testar? Pra quê?

- É que... eu tô trazendo ele do conserto, e eu tô achando que... (tira os cabos do bolso) esse cabo aqui foi trocado pelo cara lá... e eu não quero voltar lá porque ele tá muito ocupado e nem ir pra casa da vó testar lá, pra depois, se tiver problema, num ter que voltar de novo... Cê entende, né?

- Sei - afirma Zeca achando a história esquisita. O problema é que... - aponta pro irmão assistindo televisão.

- Dá um jeito, cara - apela, olhando pro menino de nariz escorrendo.

- Ei, Jorginho, a gente vai ter que...

Entendendo tudo, o menino avança pra cima da televisão, com uma cara de choro, ameaçando fazer um escarcéu.

- Num tem jeito, véio.

- Não tem outra TV, não?

- Tem a do meu quarto, mas não tem entrada pra dvd.

- Não importa, por hora, eu só preciso de uma tomada pra ver se o aparelho tá ligando; os cabos eu vejo depois - disse rápido, sem mais nenhum comedimento e ainda querendo sustentar a história dos cabos.

Foram pro quarto. Samuca ligou o dvd e no display apareceu welcome. Suspira aliviado. A emoção com que apertou o botão de abrir a bandeja poderia ser comparada a de alguém na Nasa apertando um que acionasse o lançamento de um foguete (caso isso for verossímil). Apareceu open, mas a bandeja não veio. No interior do aparelho, havia um som que fazia trac, trac, trac, e que culminaria num crack, se Samuca não tivesse desligado o dvd.

- Mas o que diabo é isso? - Indaga Samuca, aflito.

- Tinha algum dvd dentro?

- Tinha

- Então já sei mané! Quando tu inclinou o aparelho, botando debaixo do braço, o dvd deslizou pro lado e emperrou a bandeja.

- Que merda! A vó vai me matar! DVD desgraçado!

- Calma, parceiro. No final da rua, aqui perto, tem um homem que pode consertar. É na eletrônica do Oswaldo. E isso não é problema grave, basta só desparafusar esses parafusos aqui...

Samuca dispara pra porta. Só pegou o dvd e o esqueite e foi embora sem cumprimentar direito o amigo. Agora estava com um esqueite na garupa, um dvd debaixo do braço e com ódio na cabeça. Quando chegou na eletrônica, foi logo chamando pelo Oswaldo. Um sujeitinho pálido, de óculos, assomou de trás de uma parafernália de rádios e televisões. O jovem entrou atabalhoadamente e foi direto ao ponto:

- Olha, seu Oswaldo, a porcaria da bandeja desse aparelho aqui tá emperrada por causa de um dvd que tinha dentro e...

- Sei, então é pra desparafusar e tirar ele de dentro, né? diz com certa pompa.

- É, é, é, é.

- Só que tem um probleminha; não pode ser agora, porque tenho que terminar de encaixar um...

- É só um instante, não vai demorar e...

O celular do Samuca toca, interrompendo a conversa. É a avó.

- Alô?

- Alô, ei menino tu tá aonde hein? O Manoel já tá aqui te esperando com a moto pra te levar pra rodoviária.

- Que horas são?

- Mais de 10!!

- Mais de 10?!?!? Meu Deus, a viagem... pera vó, que eu... eu... já tô indo.

Pronto, estava perdido. Ia perder a viagem e danificara o aparelho de dvd da avó com um dvd pornográfico. "Ah não, isso não vai ficar assim". Vindo, de súbito, na cabeça, uma esperança de contornar a situação, diz pro Oswaldo:

- Aí, abre esse bicho e tira o dvd de dentro. Depois joga o disco fora, pelo amor de Deus! Fui...

- Ei, que hora tu vem pegar?

- Não venho, entrega pra pessoa que vier pegar no meu nome. Meu nome é Samuca.

- Tá.

Montou no camelo e saiu. Pedalava mais do que as pernas podiam. É certo que as vans nunca saiam no horário certo, mas era preciso sebo nas canelas pra não arriscar. Vai que o motorista é britânico nacionalista...

Chegando em casa, esbaforido, só teve tempo de jogar os cabos do aparelho no sofá, pegar a bolsa de viagem, colocar o esqueite debaixo do braço e pular em cima da moto do tio Manoel. Depois de pedir a benção para a avó, diz:

- Vó, desculpa, mas é que o dvd da senhora tá na eletrônica do Oswaldo.

- O quê?

- Foi só um probleminha, nada de mais, já, já o aparelho tá pronto.

- Mas o que foi que aconteceu? - Indaga a velhota num tom entre o meigo e o zangado.

- Depois eu explico. Tchau.

A moto saiu. O pobre coitado do Samuca embarcou a tempo. Apesar de todo o transtorno, estava feliz por tudo ter acabado.

***

O Oswaldo abriu o aparelho e conseguiu tirar intacto o dvd de dentro. Lembrou que o Samuca lhe pedira para jogá-lo fora, mas não o fez, pois pensou “na certa ele achou que sairia todo quebrado e é possível que até fique contente em vê-lo em perfeitas condições". Então montou as peças do aparelho e colocou o disco num saco plástico. Quando a Luísa foi à eletrônica de tarde, ele entregou os dois pra ela. Em casa, Luísa acomodou o dvd no local de onde havia saído. Não podendo suportar a curiosidade de assistir o disco do Samuca, o pôs pra rodar. Passou a primeira faixa, e em seguida viu mulheres seminuas... cantando musicas de funk. Imaginem só! As Super - Dotadas não era nada mais que um grupo de funk feminino e não um filme pornográfico. Samuca viveu todo aquele pesadelo à toa.

De noite, a avó liga pro Samuca:

- Oi querido, tudo bem?

- Tudo

- Olha, a Luisa já pegou o aparelho e o teu dvd.

- O dvd?!? E vocês assistiram?!?

- Assistimos, mas foi só tua prima que gostou daquela pouca-vergonha!

- ...

Alex Teixeira
Enviado por Alex Teixeira em 15/11/2009
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