Deveriam ter perguntado à Nancy

A repetição de fatos, estabelece um costume, uma visão de vida, e Camélia tinha como uma norma: Não pode ser um bom moço, quem não dorme depois do almoço.

Pode parecer que Camélia estava sendo extremamente fútil e vazia, além de totalmente despreocupada em saber se existe alguém no mundo a quem não foi dado o direito a sestas; não é mera aparência, com todas suas não realizações, Camélia confirmava na prática a definição do ócio, cumpria rigorosamente suas regras, estando assim sempre justificados seus períodos de inépcia, ou seria preguiça? Afinal, Napoleão Bonaparte criou um código para justificar suas medidas, só ela não poderia criar normas para explicar seu pouco dinamismo?

A Casa Grande proporcionava todo o silêncio desejado e propício a um descanso pós-refeição, o cantar dos pássaros ficava entre os sons que não incomodavam a madame, dava à senhora acordes que velam um sono justificado, os decibéis naturais colocavam-se em escalas permitidas pela dona daquele mundo preguiçoso.

Silêncio: a moenda não podia ranger, o boi não podia mugir e os serviçais deveriam cumprir todas as obrigações sem ruídos, afinal o sono da patroa e o trabalho na fazenda não poderiam ser interrompidos; interromper o sono significaria interromper o bom humor de quem dormia e interromper os trabalhos quebraria a fonte de existência de todo aquele reino, que demanda custos e, consequentemente, rendimentos.

As sestas separavam as manhãs das tardes, rotina que se arrastava por anos a fio, e foi somente em uma oportunidade que esta mecânica habitual foi quebrada, quando visitas significativas seriam recebidas e Camélia não dormiu sua sesta no dia daquele evento. O prefeito viria jantar na Casa Grande, acompanhado de sua esposa, a primeira-dama da cidade, esta citação poderia soar como uma redundância, mas essencial se fazia

realçar a condição de primeira-dama, é certo que a Casa Grande é para os habitantes locais, o que é a Casa Branca para os norte-americanos, assim todas as reverências deveriam ser cumpridas. Gerson, o marido da anfitriã e vereador mais votado na cidade teria seu nome indicado a cargos mais elevados na política estadual.

O horário reservado ao sono foi ocupado na distribuição de tarefas, só o brilho dos talheres poderia fazer frente à luminosidade dos donos da casa, prata e cristais de acasalavam à mesa e o brilho da anfitriã ocultava que aquela tarde se fez sem que ela houvesse dormido após o almoço, ela estava radiante: cheia de simpatia, de sorrisos e elegância. Valsava entre os honoráveis convidados.

A recepção ficaria marcada para sempre na memória dos participantes, mas o dia seguinte deveria ser esquecido por todos aqueles que montaram a recepção, Campélia acordou cansada, com irritante dor de cabeça, era palpável o ranço em seu humor, levando seus empregados a se arrependerem de ter votado em Gerson, se bem que o sentimento de arrependimento não cabia em servos. Mas os serviçais sentiam-se responsáveis pelo bom número de votos dado a Gerson, que, consequentemente, deu causa à comemoração.

Camélia, seu sono é o descanso dos demais, e todos questionavam como o nome de uma histérica, poderia ter dado o título a um clássico – Dama das Camélias?

Parte II

Dizem que segunda-feira é o dia consagrado À preguiça, e aquela segunda-feira veio para consagrar a sabedoria popular; Camélia estava ansiosa esperando pela hora de repousar após o almoço, tomou o dócil Gerson pelas mãos e lá se foram para o reduto destinado aos justos, a aqueles que merecem descansar

O sono se abateu imediatamente sobre o casal, e Camélia dormiu sob a égide segura do marido, que lhe dava as mãos, fazendo com que ela se sentisse segura, sem chances de se perder pelo Reino de Morfeu. Em um raro momento de lucidez, ainda que letárgico, percebeu que não tinha entre as suas mãos, a mão de Gerso, o marido protetor, e sim o bico da bolsa de água quente que sempre acompanhava o casal na empreitada de dorminhar

Gerson não estava ao seu lado, com certeza voltaria em seguida, o banheiro deveria ter exigido sua presença; ledo engano, Gerson não retornava, o que fez com que Camélia se levantasse e procurasse por ele ao redor da casa, na linda varanda que circundava todo o imóvel...nada. E, foi da varanda que viu Gerson entrando, sorrateiramente na casa de Nancy, a mais sensual e cobiçada menina da região, ainda que fizesse parte da plebe.

Um desmaio lhe tomaria a oportunidade de continuar a vigília e por isto não desmaiou, mas sentiu-se uma idiota, ela mesmo deu à Nancy a permissão de invadir a privacidade do quarto do casal, um santuário a ser preservado, para manter imaculado o andor destinado à prática de suas aventuras amorosas com seu amado Gerson. Camélia teria colocado a Nancy, uma linda menina, de seios mais lindos ainda, dona de coxas roliças, que fazem os homens a sonhar, para limpar o quarto, onde Gerson repousava, enfim , Camélia colocou o feno muito próximo de uma chama ardente...seria fatal a conseqüência.

Todos os homens cederiam à tentação chamada Nancy, como Camélia pode excluir Gerson da lista dos mortais? Sob seus olhares, ela colocou o marido ao alcance de tentáculos muito visíveis, que os decotes de Nancy tornavam mais visíveis ainda; um pecado à disposição de um pecador.

Todos os castigos passaram pela sua imaginação: assassinato, ostracismo; degredo, torturas chinesas, mas tudo isto revelaria a todos a mancha moral que marcaria toda sua existência, além de desfazer o conceito de magnitude e nobreza que norteavam seu caminho, pelo menos assim ela pensava.

Confirmou suas suspeitas nos dias seguintes, Gerson sempre tomava o rumo da casa de Nancy, para saciai seus ímpetos e, olhando para Nancy, Camélia quase que conseguia entender os ímpetos do marido, mas nunca deixaria esta sua impressão vazar. Procurou pela Guiomar e, com seu coração magnânimo, propôs à mãe da Nancy, dar à menina um futuro mais generoso e amplo, afinal aquele vilarejo era pequeno para o tamanho dos atributos de uma garota que exigia centro maiores, educação ,ais apurada.

Todos os custos daquelas mudanças propostas ficariam como responsabilidade da Camélia, que via a aventura de seu amado se desfazer com a distância plenamente justificada. A atitude de Camélia seria visto, por historiadores, como uma medida perpetrada por Catarina, a Grande, uma déspota esclarecida.

Guiomar via a separação da filha como uma amputação, perderia um de seus membros, mas a oferenda proporcionaria à sua filha, algo que ela mãe nunca poderia almejar ou propor, aceitou a proposta e viu sua filha partir para uma cidade grande, distante, mas com uma universidade promissora.

Parte III

As cartas saudosas, mas ortograficamente perfeitas, mostravam à Guiomar que o rumo certo havia sido tomado, sua filha estava se tornando uma menina culta e de educação polida; com horizontes ilimitados à sua frente, Nancy se transformaria também em uma dama. Os horizontes de Nancy avançavam muito além daquele infinito que Guiomar conseguia alcançar com o olhar da varanda que ela sempre limpava, o mundo de Nancy estava depois do mundo de Guiomar.

Camélia retornou às suas sestas diárias, pois sua sábia e salomônica decisão afastou o perigo de seu lar; e Gerson durante o sono de Camélia voltou a fugir do seu leito conjugal, deixando a bolsa de água quente substituindo suas mãos, na mão da esposa, para colocar-se nos braços de seu clandestino e verdadeiro amor...Guiomar; sabendo agora, que Nancy nunca poderia surpreende-los , naquele romance infiel, que já durava anos..Nancy estava do outro lado do mundo crescendo para uma vida nova

Roberto Chaim
Enviado por Roberto Chaim em 12/11/2009
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