O som da palavra irmão
A praça d’italie à noite sempre foi o aconchego de Leroy, homem mudo, faxineiro que transmitia uma energia positiva por onde passava, mesmo não sendo notado dava o brilho contrastante que qualquer lugar, e também aquela praça precisava àquela hora da noite.
Sentado no banco da praça e coçando as barbas ficou ali vendo o vento passar devagar e as folhas se arrastarem e aos poucos, sons se unindo. Especialmente o som da água da fonte o levava para um mundo mais distante, de paz, depois de um longo dia de trabalho.
Quando saiu do seu transe momentâneo de descanso, olhou para as mãos e pensou o quanto sua vida era difícil, quando finalmente voltou a olhar horizontalmente para a praça, viu um senhor vindo na sua direção aparentemente de comprimento semelhante a seu próprio, e também uma das poucas pessoas por ali.
O senhor aparentava mais novo do que a própria idade sugeria e conforme vinha se apoiando na bengala andando linearmente revelava seu semblante. Leroy via sua imagem e semelhança chegar mais perto e contorcer-se como num sonho. Olhava a si mesmo, mas não se via.
Estava com um sobretudo preto, com a barba linearmente cortada apenas um pouco menor que a atual de Leroy. Aparentava ter dinheiro, muito dinheiro pelo relógio e os trajes típicos de um cidadão da alta classe parisiense.
O senhor começou a chorar, não disse uma palavra, não conseguia. Tirou o relógio do seu braço e colocou no braço de Leroy, depois tirou o sobretudo, puxou os braços de Leroy e o vestiu com aquela traje. Por fim lhe entregou a bengala, deu um abraço forte, virou-se saindo em disparada.
Leroy sentiu-se desconfiado e curioso, pois ao mesmo tempo em que o homem se parecia muito com ele, também deu todas aquelas coisas para ele sem dizer uma única palavra e saiu dali. Não que Leroy também tenha dito é claro, ele era mudo, mas ficou ainda mais intrigado porque sentiu naquele abraço algo muito verdadeiro que lhe provocou uma sensação nostálgica peculiar.
Parou para pensar que não reagira naquela situação não movera um único músculo, e também o quanto era estranho alguém parado na praça com numa mão uma bengala de madeira nobre com detalhes em prata e na outra mão uma vassoura dessas cedidas pelo município aos faxineiros.
Não pensou muito, largou a vassoura. Agora já não dava mais tanto contraste à praça que permanecia sombria como seu novo semblante, perdeu também o brilho porque ao longo de toda essa situação seu sorriso de bom trabalhador cansado, mas satisfeito, desapareceu.
Saiu da praça e seguiu na Avenida Des Gobelins, parou em um café vinte e quatro horas, que acostumava tratar mal pessoas mau-vestidas, quis fazer uma pequena experiência como tratar-lhe-ia a moça do balcão agora que estava bem vestido. Antes que entrasse dirigiu-se ao banheiro, entrou em uma cabine dali escutou uma conversa.
O jovem que passara por ele na porta disse para outro homem também no banheiro que um ricaço havia desaparecido e tão pouco havia fotos do homem, e que provavelmente era algum dono de uma destas empresas gigantes, homens que permanecem sempre anônimos.
Perdeu o interesse no resto daquela conversa e entrou no café. Sentou-se em uma mesa do fundo, daquelas em que as cadeiras estofadas tampam toda a visão e você fica praticamente isolado em um ambiente.
Não pediu nada, achou estranho, pois aparentemente foi praticamente ignorado pelos garçons, alguns minutos depois chegou uma garçonete com um prato de ovos com bacon e uma bebida que não soube identificar pela aparência. A garçonete disse:
- Como vai Sr. Abenthy? – Leroy apenas balançou a cabeça positivamente aquele não era seu nome e as coisas que estava diante da sua mesa, com certeza não havia pedido.
- Vejo que o senhor resolveu trocar de mesa hoje e chegou também mais cedo. – Leroy começou a entender provavelmente estava sendo confundido com outra pessoa talvez o homem que o dera as roupas e os acessórios que vestia agora. Por esse motivo limitou-se a um sorriso e um aceno de cabeça. A garçonete se retirou.
Tomou um gole da bebida, tinha um sabor amargo e com certeza era alcoólica, comeu toda a comida enquanto a garçonete lá no balcão falava com outra mulher, Sr. Abenthy deve estar com algum problema familiar, Leroy escutou, pois com a mudez desenvolveu muito bem a audição. A mulher comentou, talvez o cara que sumiu é alguém da família dele, uma conclusão palpável se realmente fosse o senhor Abenthy que se encontrava ali e não Leroy.
Quando girou a cabeça sobre os ombros para olhar a avenida pelo vidro, sentiu que uma saliência dentro do sobretudo causou cócegas no seu peito. As mulheres ainda conversavam, aquele velho ali, é vi que ele chegou cedo, velho chato aquele, que maldade, ela nem o conhecia.
Ele não se importou, não era mesmo a pessoa que achavam que era, estava mais interessado no que havia no bolso do sobretudo, colocou a mão e tirou uma carta, por sorte aprendera a ler alguns meses atrás.
Quando terminou de ler tremia, pronunciou pela primeira vez algo em voz alta: “Abenthy”, foi o som da palavra que o fez chorar. A carta mudou a sua vida e as cartas nela contida já mudara sem que ao menos soubesse. Cartas de baralho, a carta de vinho, uma antiga carta de alforria...