MOMENTOS...APENAS MOMENTOS
 
Momentos... apenas momentos !
- São uns anjos, quando dormem – disse Bia, voltando do quarto das meninas. A casa fica tão silenciosa, quando as crianças estão na cama!
- Nem tanto. Somente depois de desligar a televisão, isto sim – corrigiu a amiga que acabara também de colocar o seu anjinho na cama.
Cléo agachou-se no chão para apanhar as almofadas esparramadas pela sala e recolocá-las em seus devidos lugares. As almofadas no chão eram o local preferido das crianças para discussões sobre programas na tevê, entre outras perversidades como puxões de cabelo e chutes delicados onde bem acertassem. Apanhou um pé de tênis e foi à procura do outro debaixo do sofá. Juntamente com o tênis, fitas de cabelo e revistinhas de super-heróis. Levantou-se do chão e foi até a mesa da sala de jantar recolher o quebra-cabeça desmontado que haviam terminado. Todos se divertiam muito com o quebracabeça exposto na grande mesa da sala de jantar. No dia seguinte começariam a montar outro jogo. A mesa ficava na rota da geladeira da copa. Cada um que por ali passava debruçava-se sobre o jogo e colocava algumas peças.
Cléo apreciava a casa prestes a adormecer. Gostava de sentir o cheiro que o dia deixara e da energia que pairava no ar até o amanhecer.
- Deixe tudo aí, Cléo. Amanhã a empregada recolhe tudo isto. Elas estão aqui para isto. São pagas para manter tudo em ordem, não são?
- Concordo com você. Especialmente hoje, sinto-me esgotada. Essas crianças chupam o meu sangue com canudinho. Acredito que seja o calor, o sol ardente o dia todo, mas o dia hoje foi lindo, você não acha! Sedutora, passou as mãos pelo colo bonito e rosado. - Veja como estamos queimadas de sol. As crianças também aproveitaram bem a piscina e o mar. Elas estão queimadinhas também. Foram dormir cansados, os nossos anjinhos. São lindos os nossos filhos, não é... Eu os adoro! Deixou-se cair no sofá em frente à amiga, mas não poderia ir para o quarto sem deixar a sala em ordem. Cléo concordou com Bia, mas gostava de levantar-se pela manhã e encontrar a sala em ordem.
A luz difusa do abajur iluminava o perfil de Bia.
Bia era uma linda mulher. Sempre fora bonita, desde a adolescência, e agora com trinta anos estava no auge da beleza. As duas eram grandes amigas. Conheceram-se na infância e nunca mais se separaram. Casaram-se e tiveram filhos quase ao mesmo tempo. Os maridos também eram bons amigos. Ficavam felizes, quando estavam juntos. Homens ricos, elegantes, bonitos e cultos, discutiam política, negócios e outros assuntos. As mulheres nem sempre eram incluídas. Cuidavam da rotina doméstica. Mas, para elas, não fazia a menor diferença. Tinham vida própria, assuntos próprios e afazeres diferenciados. Geriam o presente e preparavam o futuro com dedicação e carinho. A família saudável e feliz era o norte. No momento, apenas uma pausa. Nada que interpusesse entre elas e o papel social de ambas.
- Um centavo pelos seus pensamentos... – Bia estranhou o silêncio da amiga. – Ainda cansada? Admirou seus cabelos soltos em cascata pelos ombros. Uma mecha lhe caía pela testa e encobria parte de seus lindos olhos castanhos e expressivos. O perfil de Cléo era muito delicado. O nariz perfeito e levemente arrebitado harmonizava o rosto redondo e de pele morena muito bem cuidada. Duas mulheres bonitas sem problemas existenciais e sexualmente bem resolvidas.
Cléo, sentada sobre uma das pernas, passou os dedos pela mecha de cabelos que lhe caía sobre os olhos e jogou-os para trás. Com um trejeito de mistério e um meio sorriso nos lábios, tateou a mesa ao lado do sofá a procura da presilha de cabelos que havia ali deixado. Prendendo-os com a fivela e com um sorriso nos lábios, respondeu a Bia que aguardava da amiga uma resposta.
- Não precisa pagar nada, não. Eu estou pensando como seria bom se estes dias se prolongassem por mais tempo. O verão poderia se estender e nós poderíamos ficar aqui neste paraíso com as crianças, curtindo este céu azul sem nuvens, o sol quente, o mar calmo, a praia limpinha... Não chove a mais de trinta dias. Somente o sol estatelado lá em cima. Apenas este calor gostoso que nos deixa lânguidas com vontade de fazer nada. Sabe, Bia, o prazer de viver com as pessoas que amamos deveria perdurar no tempo. Adoro ver as crianças brincando, comendo juntas, pedindo coca-cola, sorvete, pastéis. Sinto um prazer imenso em levar meu filho para conhecer lugares novos, levá-lo a atravessar o riacho a pé, entrar em cavernas, descer pequenas corredeiras, atravessar a serra até o outro lado, passando pela mata fechada, e entrar no rio de águas frescas jorrando serra abaixo. A felicidade que ele sente em desbravar o desconhecido ao lado da mãe é emocionante. Os “por quês” disto ou daquilo me fazem sentir uma gigante de conhecimentos. Estamos plantando o nosso futuro, escrevendo a nossa estória de vida. Estes são dias, são momentos, que as crianças jamais esquecerão. Muito menos nós...
Bia sorriu. Cléo é romântica, pensou. - As crianças brigariam o tempo todo – disse estendendo a mão para a mesinha lateral até o maço de cigarros. Também ela tivera a mesma idéia, mas era pragmática. Pegou o isqueiro ao lado, na mesinha de canto, acendeu dois cigarros, passando um a Cléo que agradeceu da forma habitual: aproximou a palma da mão dos lábios e soprou um beijo no ar.
A amiga novamente tinha razão. Os três disputavam o mesmo espaço na rede, brigavam na piscina, no carro, puxavam os cabelos uns dos outros. Um inferno! As crianças não se suportavam, discutiam por qualquer motivo, ciúme doentio de tudo. Isto tudo trazia desconforto entre os amigos.
Flávio, marido de Bia, disse a Cléo, após uma briga das suas filhas com seu filho por um lugar na almofada: - Você precisa explicar ao seu filho que as meninas são seres especiais, precisam ser tratadas como princesas, ao que Cléo respondeu a ele: meu querido, os dias de hoje são outros e os de amanhã serão mais diferentes ainda. Podes crer, num mundo competitivo não haverá espaço para princesas e sim para homens e mulheres em igualdade de condições de disputar seus espaços. É bom que eles reivindiquem desde cedo e aprendam a ganhar e a perder. Devemos cuidar para que não venham a extrapolar com violência em suas discussões. É bom que aprendam que o direito de um termina quando começa o direito do outro e que violência gera mais violência. Afora isso, não vamos nos aborrecer. Vamos curtir esses dias maravilhosos, aqui, todos juntos. Neste momento eles estão brigando, mas amanhã estarão brincando, se abraçando, e nós poderemos estar magoados um com o outro. Eles se gostam, sentem falta uns dos outros, quando estão separados. Crianças são todas iguais, só mudam de endereço. Flávio, a contra gosto, se afastou, porém não convencido com a explanação de Cléo. Mas o futuro diria quem tinha razão.
- Poderíamos, pelo menos, morar mais perto... Disse Cléo com saudades antecipadas daqueles bons momentos ali compartilhados.
- Nos vemos quase todos os dias, querida. A distância não é empecilho a nada. É melhor assim, não nos cansamos uma da outra, concorda? Riu gostoso deixando à mostra duas lindas fileiras de dentes perfeitos. Levantou uma das pernas morenas e esticou-a acima da cintura, flexionando o pé de unhas perfeitas. Gostava de se exibir.
Cléo deu algumas tragadas do cigarro e levantou-se para preparar drinques para as duas. Um Porto, depois que colocavam as crianças na cama. Eventualmente também jogavam “buraco” ou, quando os maridos chegavam para o fim-de-semana, um pôquer jogado a quatro. Nas noites em que os maridos já não estavam presentes, iam à vila encontrar-se com amigos para um “bate papo” ou coisa do gênero e também para se sentirem o centro das atenções. Amigas desde sempre tinham estórias compartilhadas para relembrar, novas para contar e tantas outras para fazer acontecer. Noites de fevereiro sempre quentes, após dias ensolarados, eram convites para o desfrute da brisa vinda do mar, roçando delicadamente a pele quente queimada pelo sol das manhãs de verão.
- Vamos, minha linda! Nada de moleza nesse corpão. Se ponha bonita que nós vamos ver as corujas na estrada. Vamos, vamos... Vamos pra vila. Nada de ficar vendo televisão como duas tontas. Parafraseando Vinícius, “a noite é uma criança”, disse Bia.
- E as crianças?
- Vou chamar a Francisca para ver televisão aqui na sala e ficar de ouvidos atentos nas crianças. Para qualquer emergência, deixo o telefone do barzinho.
Ao levantar-se, ouviu-se um estalo.
- Droga, meu bustiê arrebentou.
- Foi a alça?
- Não, o fecho – e virou-se para a amiga, abraçando os seios.
- Bia, você acha meus seios grandes demais?
- Não, são grandes, mas são firmes e bonitos.
- Está falando assim só para me agradar, não é?
- De jeito nenhum. Os meus são maiores...
- Vamos medir? Ainda abraçando os seios com um dos braços, tomou um gole do seu Porto e amassou no cinzeiro a ponta de cigarro já no fim. Vamos pro quarto medir. A gente se despe e compara. Enquanto caminhavam pelos espaços até o quarto, iam recolhendo brinquedos que encontravam no caminho.
- Que perfume gostoso, querida! É sabonete?
- Sim, eu os trouxe de Marselha quando estive lá, no ano passado. É Occitani, você conhece... Presenteei-a com uma caixa com fragrância floral, bem ao seu gosto. Este meu é mais forte, como eu gosto... E sorriu para a amiga, movimentando o corpo todo sensualmente e tirando o sutiã .
- São lindos os teus seios, amiga! Cléo reconheceu.
Rosto lindo, cabelos negros, busto rosado, pele sedosa, cintura fina, pernas longas. Porém, Cléo não perdia em atributos. Rosto redondo e bonito, cabelos longos e loiros, pele morena, sedosa e perfeita, coxas roliças e pés perfeitos. Eram duas mulheres muito bonitas e poderiam competir em qualquer desfile de beldades.
- Decididamente perdi o campeonato. Os seus seios são maiores do que os meus. – Bia admitiu, confrontando-os
Carinhosa, Cléo aproximou-se do corpo da amiga, colou seus seios mornos em suas costas, acariciou-lhes os ombros e desceu os dedos em direção aos seios. Acariciou-os. Bia sentiu arrepios e apertando as mãos de Cléo, beijou-as...
- Credo, Bia... Você está febril! Com certeza é o calor. Vamos sair, vamos pra vila, antes que eu desista... Beijou a amiga, soltou os cabelos e foi para o seu quarto pegar a bolsa. Apenas um momento para sentir e não comentar.
- Nem pensar... Já estou descendo. Mais um minuto só – disse Bia. Vou passar um batom nos lábios e pegar as chaves do carro. Saiu e apagou as luzes, mas nem todas. Deixou uma pequena lâmpada acesa na sacada para a tranqüilidade das crianças, se acordassem durante a noite.
Eram raros os momentos de intimidade. As crianças não permitiam. Estavam sempre por perto. Tinham tanto a dizer uma a outra e dificilmente se sentiam à vontade. Mas, este era o tempo dos filhos, do marido, da casa... Estavam tecendo o futuro. Há um tempo para tudo.
Na estrada, dentro do carro, o mar as presenteava com uma brisa morna. Brisa que entrava pelas janelas do carro, agitando os cabelos de Bia e Cléo. O momento era uma pausa. Iriam se permitir algumas loucuras. Um hiato entre a realidade e a fantasia.
No rádio do carro, Roberto Carlos cantava em Cavalgada suas aventuras no café da manhã e, sem censura nem pudor, abria os botões da blusa da amada, vivendo aquele momento lindo. Vagalumes passavam desvairados e se estatelavam no parabrisa, deixando um borrão liquefeito. Corujas mergulhavam no ar em voos rasantes e, assustadas com os faróis acesos, exibiam a silhueta pequena marcada por dois olhos redondos, expressivos e claros como fachos de luz na escuridão da noite. A lua cheia se abria toda ao mar, se esparramava e se oferecia em luz, estabelecia limites ao caminho prateado que os golfinhos trilhavam em movimentos contínuos.
Neste momento especial, na estrada deserta, em que o céu parece tão perto e as estrelas ao alcance das mãos, Bia e Cléo festejam em silêncio os sons e os cheiros da natureza. Som da água caindo da serra em cascata e marulhando até o mar, o pio das corujas a procura de seus pares, latido de cachorros, acusando a passagem de estranhos na estrada, miado histérico de gatas no cio, e o ruído de outros bichos pelo mato a dentro. Os cheiros de capim e da terra molhada, os perfumes de dama-da-noite e de manacá, espalhavam odores diferenciados, e a estrada, iluminada pela lua cheia, completava os sentidos.
Vez ou outra, um cavalo atravessava a estrada e sumia do outro lado, levando a reboque um pônei.
A vida ofertava privilégios às duas amigas oferecidos a poucos. E elas desfrutavam da oferta. Absorviam cada momento como quem degusta um vinho da melhor safra, em taças do mais fino cristal. Vinho saboreado lentamente, até a última gota!
Bia e Cléo não tinham noção exata da preciosidade dos momentos vivenciados. Somente com passar do tempo elas entenderiam que o destino estava tecendo uma parte da estória de suas vidas. Esses eventos deixariam marcas profundas. Marcas de um tempo no presente e sem preocupação de futuro. Um tempo passando lento. Um tempo que seria resgatado, com certeza, em cada foto, em cada cheiro bom vindo da mata, em cada som de água rolando pelas pedras em cascata, em cada música ouvida ou cantada e em cada brisa morna chegando do mar.
Esturato/2009