Color: Rafmagns

As confusões magnânimas que se desencadeavam ao redor das minhas frustrações e contemplações vinham, aos poucos, se acentuando cada vez mais; formavam círculos infinitos problematizados, mas, simultaneamente, havia aquela percepção atmosférica de que deveria estar tudo bem, até mesmo quando não estava. E, realmente, não estava tudo bem. Continuei mirando a vista da janela daquela lanchonete de categoria discutível, enquanto bebia um gole do suco de pêssego. A janela estava fechada e, no vidro, eu podia ver meu reflexo distorcido: os cabelos negros e curtos, a pele branca, levemente bronzeada, a barba recentemente feita, os olhos castanho-claros; sempre vestindo, a cada dia, uma camiseta de cor diferente.

O celular tocou: olhei o visor do aparelho: era Celina. Desliguei antes mesmo de atender. Ela era uma das frustrações. Tinha a conhecido há poucos meses, mas com surpreendente velocidade, ela havia proposto – e, de certa forma, imposto - a criação de uma relação de intimidade elevada, coisa que, na época, repudiei, mas não pude evitar; pelo menos não por certo tempo. A “quebra” abalou-a do modo mais irritante possível: sempre na insistência insuportável de que pudéssemos reatar o que havíamos tido. Apesar de tudo, era uma garota bastante atraente.

— Deu, no total, R$ 15,00.

— Tome — paguei e saí.

Do lado de fora, a atmosfera era imprudente, mas chamativa. As luzes da noite. Com o celular à mão mais uma vez, disquei um número recente, mas mais popular que a maioria, indiscutivelmente.

— Alô? — disse a voz masculina do outro lado da linha.

— Bernardo! Cara! Nada pra hoje?

— Hahaha! Calma, calma, calma, irmãozinho. Já está pulando a parte dos cumprimentos assim? Mas não tem problema não. Poxa, cara, hoje é sexta, eu sei que você quer curtir, pegar mulher, mas... Espere aí, um segundo — esperei. Alguns murmúrios baixos podiam ser ouvidos, mas nada com exatidão. De súbito, Bernardo voltava ao telefone. — Então, cara... Mudança de planos. Estão dando uma festa num bairro próximo da minha casa. Se quiser passar aqui, poderemos ir pra lá juntos.

— Está certo. Estou a caminho. Dê-me apenas uns quinze minutos.

Corri até o ponto de ônibus, subi no primeiro que vi – por sorte, era o certo. Os minutos passavam; dessa vez, no entanto, meu reflexo causava-me desagradável calafrio: o rosto de Celina vinha à minha cabeça de maneira incômoda; com um “sopro mental”, exilei-a temporariamente, mas, para minha surpresa, outro rosto feminino surgiu, atingindo-me na alma: Ana. Ah, Ana. O que era todo aquele amor que eu sentira? De certa forma, ainda perdurava. Era saudoso, cheio de plurais e risadas esquemáticas; absolutamente divertido e genial. Ainda a amava, fatidicamente. Ela era uma das contemplações. Eterna, única, atemporal.

Desci no ponto desejado: a casa de Bernardo não ficava nada longe. Andei mais alguns minutos e me deparei com aquela residência comum, ao menos externamente. Toquei a campainha e esperei. Bernardo não tardou a aparecer, sorridente, já pronto para sair. Nem sequer convidou-me para entrar.

— Vamos, vamos indo. Quanto menos tempo perdermos, melhor.

— Tempo é o que não falta nessa vida, Bernardo.

— Lógico que não. Ainda. Mas uma hora vai faltar. O difícil é saber como vamos aproveitar cada segundo. E qual é a maneira certa de se aproveitar. Enquanto não sabemos, que se dane o tempo.

Sorri, me divertindo com a confiança daquelas palavras. O visual de Bernardo exalava isso: era tão ou mais colorido que eu, mas tendenciosamente mais hiperativo e egocêntrico, mais por conta daquele boné azul-marinho cheio de desenhos vermelhos virado para trás, do que por qualquer outra coisa.

— Dá pra ir andando até lá? — perguntei.

— Dá sim. Mas pra quê andar, se podemos correr?

— Essa hora da noite, cara? Não sei se é uma ideia tão boa.

— Duvida?

— Não — e comecei a correr, rindo. Imediatamente, Bernardo disparou também.

No céu, havia algo de ameaçador no brilho da lua minguante. Minha intuição trazia à tona a possibilidade de acontecimentos imprecisos e fascinantes. Mas certezas não existiam.

— Ali! — gritou Bernardo, apontando para uma casa com um extenso quintal, no qual se podia ver um considerável número de indivíduos. — É uma festa “chamativa”, admita! — disse ele, apontando e fazendo gestos para os traseiros femininos.

Uma fenda luminosa surgiu na minha frente e eu pude vislumbrar mentalmente o rosto de mais uma garota. Isabel. Bonita, moderna, musa. Minha atração por ela se multiplicava cada dia mais; havia uma perfeição conforme, desde a personalidade à aparência física. Era uma semideusa. A segunda contemplação, com sérias chances de se tornar a maior.

— Vamos, vamos entrar logo. Aquela ali está me esperando! — exclamei.

Entramos. A hostess logo veio nos receber cordialmente – tinha olhos tão azuis que quase me afoguei neles, tão grande era a beleza daqueles pequenos pontos luminosos.

De imediato, Bernardo se distanciou: foi à caça; por último, uma frustração tola passou velozmente pela minha consciência, sem força suficiente para permanecer mais que três segundos. Verônica. Nada. Era apaixonada por mim, mais nada. Frustração pura. Não podia corresponder. Não queria, não podia, simplesmente.

Tomei as rédeas de toda aquela situação, adiantando-me lentamente na direção de uma bonita moça de cabelos castanhos, o corpo escultural; no caminho, arremessei certa quantidade de vodka goela abaixo. Ardia e congelava ao mesmo tempo. Perfeito. Mais um passo. Suspiro. Celina. Ana. Isabel. Verônica. Nomes jogados ao vento. Pura insignificância. Mulheres, uma maravilha. Parte da vida. Parte do universo apodrecido.

— Oi — murmurei.

— Oi — respondeu ela, no mesmo tom, sem demonstrar qualquer tipo de interesse.

— Olha aqui, antes de qualquer coisa... Não me diga o seu nome. Vamos apenas comemorar. Você é uma mulher, eu sou um homem. Do que mais precisamos? Que tal uma bebida?

Ela riu, levemente confusa. Seus olhos pungentes me fitaram com doçura. Eu via certo dom artístico ali. Qualquer coisa, qualquer ramo da arte. Ou talvez fosse pura tolice da minha mente.

— Me beije — disse ela, sorrindo com relevância.

Aproximei-me com suavidade. Fechei os olhos, sentindo a respiração dela cada vez mais próxima da minha. O calor de seu corpo também se aproximava. Havia algo de diferente. O aroma de seu perfume era hipnótico, extasiante. Instigava alguma intensidade nas entrelinhas. Meus lábios tocaram os dela levemente, causando a mim uma surpreendente sensação de enlevo, tal qual eu raras vezes sentira; o teor do ósculo elevou-se, e passamos a nos beijar com certa força volúvel, mas a essa altura pude perceber uma atração incontrolável a me dominar – se a ela isto também ocorria, eu não podia me certificar naquele momento. O beijo se prolongava, sem pausas, com uma doçura quase violenta. Minhas mãos a acariciavam nas mais diversas regiões de seu corpo; aos poucos, esquecíamos da festa, do local onde estávamos; da música eletrônica estridente. Era um beijo perfeito.

— Nossa! — exclamou ela, no instante em que desfizemos o beijo. — Isso foi incrível. Foi quase... Como um sonho. Você sentiu... Tudo isso também? — ela falava, dando-me beijos delicados, os braços em volta de meu pescoço.

— Sim. Foi absolutamente inesquecível. Que mágica é esta que você tem nesses seus lábios? — perguntei, beijando-a com ternura.

— Não sei. Talvez não seja eu. Nem você — ela sorriu, beijando-me com certa rapidez sensual. — É a soma.

Suspirei, encarando aqueles olhos veementes.

— Talvez. Talvez. Mas é passageiro. As coisas boas não se prolongam por muito tempo.

A garota me olhou curiosamente, desviando o olhar em seguida, inclinando a cabeça e roçando sutilmente seus lábios no meu pescoço. Meu corpo estremecia com aquilo tudo; e, no fundo do meu peito, uma chama obscura ardia com angústia.

— Você... — começou ela, num tom de onisciência. — Você não acredita mais no amor, não é mesmo?

Não respondi. Eu queria acreditar, mas tudo me levava a insistir na ideia de que tal coisa não passava de uma ilusão; o amor. Minha mente, mais uma vez, me denunciava à minha própria existência.

— Eu quero acreditar, mas não consigo. Não mais.

— Não está sentindo ele agora? Ou o que é isso que você acha que está sentindo? — questionava ela, brandamente, ainda me presenteando com beijos sutis.

— Atração física. Sexo. A paixão que flameja aqui dentro é só a mistura de tudo isso. O amor, o amor mesmo, de verdade, bioluminescente, não existe.

— Nós podíamos criá-lo, então.

Sorri. Ela tinha razão. Tentar era uma opção. Sempre é; se chegaria ou não a valer à pena, não importava.

— Está certo — respondi. — Vamos ver até onde podemos chegar.

Demos início a mais um beijo prolongado. Os atributos ainda permaneciam na mesma elevação celestial. Êxtase. Ainda assim, eu tinha minhas dúvidas a respeito do que havia de tão especial naquilo tudo. Com os lábios separados mais uma vez, ela, sorridente, perguntou:

— E agora? O que está sentindo?

— Mesma coisa. Ou até melhor. Estonteante.

— Viu? Estamos chegando lá — disse ela, rindo prazerosamente.

Abracei-a com força; pude sentir seus seios volumosos se apertando contra o meu peito; o calor aumentava cada vez mais. Ainda abraçando-a, sussurrei:

— Não sei como é possível... Numa festa comum, quais seriam as chances da primeira garota que eu encontrasse ser a pessoa mais apaixonante que eu viria a conhecer na vida?

Senti a respiração dela, o perfume, o calor, tudo junto, num frenesi quase sinfônico. E depois, a voz meiga:

— Esse tipo de pergunta não faz sentido. Talvez não existam chances. As coisas simplesmente acontecem. Se é destino ou uma mera coincidência, não iremos descobrir tão cedo. O que importa... A única coisa em que nos devemos nos sustentar... É nessa força. Mesmo que seja só uma ilusão momentânea. Mesmo que não tenha significado algum. Eu já tentei ser racional, e não gostei. Não se chega a muitos lugares. Pelo menos não quando falamos de amor.

Feliz com a resposta dela, questionei:

— E ser passional levou você a algum lugar até hoje?

Imediatamente, ela retorquiu:

— Talvez. A vida é um grande talvez. Mas posso dizer que sou uma garota feliz. E você está funcionando como um dos ápices dessa felicidade. Vamos, vamos parar com essa bobagem. Qual é o seu nome?

Soltamo-nos do abraço; fitei-a profundamente.

— Quer mesmo saber? Meu nome é Dante, mas só Dan já está bom. E você?

— Ester.

— Diga-me, Ester, você está solteira?

Ela suspirou, fitando os próprios pés.

— Acabei de sair de um relacionamento longo. Minha cabeça anda muito confusa ainda. Mas você está funcionando como um divisor de águas, Dan.

Mas, antes que eu pudesse me dar conta, um braço me puxava com força para trás, ao passo que um punho vinha na minha direção com extrema velocidade, atingindo-me destruidoramente. Meu nariz sangrava e eu sentia tudo girar. Respirei fundo e enfoquei o meu agressor: um rapaz duas vezes mais forte que eu e consideravelmente mais alto. Bem vestido, camisa branca, bermuda, tênis de marca. Rosto bonito. Um rosto que, imediatamente, eu ansiava poder desfigurar. Apanhei a garrafa de vodka mais próxima, quebrei-a ao meio e avancei furiosamente contra o indivíduo.

— Quer que eu sangre, hein pirralho? Quer? — bradava ele, vendo-me com a garrafa quebrada na mão, mas sem demonstrar qualquer tipo de medo.

Na primeira tentativa de ataque, ele desviou e eu caí abruptamente; a garrafa, dessa vez, quebrara em mais pedacinhos, e eu podia ver minha mão direita a sangrar abundantemente. Com a mão esquerda, apanhei um pedaço grande do vidro da garrafa quebrada e parti para uma tentativa de contra-ataque.

— O que você quer, hã? — eu gritava. — Me diga. Ela é sua namorada ou algo assim, seu idiota?

— Você não sabe com quem mexeu, meu rapaz. Não sabe. Ela é minha. Você não entende e nunca entenderá esse sentimento. Eu a amo. Ela me ama. É a reciprocidade perfeita, meu amigo. Você invadiu um território proibido. Você quer que eu sangre? Mas quem sangrará aqui é você!

Mais um murro devastador me atingia em cheio. Caí, sentindo mais sangue a derramar de meu rosto. Minha mão ardia numa dor quase inimaginável. De súbito, a hostess apareceu gritando, pedindo que alguém, no meio de toda aquela gente que assistia, ajudasse a nos separar. Alguns garotos se aproximavam, porém, pararam imediatamente ao verem a arma de fogo que o rapaz de camisa branca tirava de trás da cintura.

— Parados. Ninguém se mexe. O negócio aqui é entre mim e este inseto, infeliz inseto. Relaxem e assistam.

Ele apontava a arma na minha direção. O medo dominava-me completamente. Não conseguia pensar em nada. Era só o medo, o medo, mais nada. Tudo sumira. Fechei os olhos. Ouvi o som de dois tiros. Abri os olhos. Eu estava inteiro. O rapaz caído no chão, morto, ensopava o chão de sangue, a arma ainda segura em sua mão. Procurei, ao redor, tentando adquirir conhecimento a respeito do que teria acontecido e a vi: Ester, de joelhos no chão, segurando um revólver pequeno, a feição estática e o corpo tremendo impetuosamente. Algo como um clique despertou-me e corri até ela, abraçando-a e fazendo-a soltar a arma. Ela retribuiu o abraço com intensidade apreciável. As lágrimas da garota despencavam numa incorporação de tristeza perene.

— Eu estou aqui, Ester. Acalme-se.

Ela recuou sorrateiramente, e fitou-me com os olhos arregalados.

— Eu o matei, Dan — sussurrara ela e, para minha surpresa, um singelo sorriso brotava em seus lábios dóceis.

Alan Luiz
Enviado por Alan Luiz em 08/11/2009
Reeditado em 08/11/2009
Código do texto: T1911852
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