Às nove horas
Judite estava apreensiva. Tomás viria, era certo, mas com que propósito? As palavras dele tinham sido compreensivas, amáveis, apesar do que tinha acontecido. Ela fora cruel com ele, sabia disso, mas estava arrependida. Profundamente arrependida, diga-se de passagem. Jurou na primeira vez, com a foto de Nossa Senhora Aparecida junto ao peito, que nunca mais faria tal barbaridade. Mas um mês depois lá estava ela em amores por Beto. Mas desta vez Tomás ficou sabendo.
Tomás, corpulento como era, levantaria Judite aos céus e a partiria em duas se quisesse; ela era um palito de dentes perto daquela massa muscular. Mas ele era amável, sempre foi. Só tinha tamanho, não faria nada a uma mosca. Sua doçura contrastava com sua robustez. Ela, sim, fora sacana, era inegável. Mas quem um dia não fez besteiras? Trair? Quem não traiu? Tomás se dizia fiel, na verdade a mulher nunca soubera ou vira alguma coisa que o denunciasse. E ela? Duas vezes traidora. Meteu os cornos no coitado, e assim mesmo parecia perdoá-la. Dócil, muito dócil. De certa forma, condizente com sua posição de traído, manso. Não, ele não merecia tal estigma. Ele a perdoaria com certeza. Percebia pela sua voz ao telefone:
– Eu te perdoo, Ju.
– Perdoa mesmo?
– Claro, confie em mim.
Sim, deveria confiar nele. Coitado, traído. Mas não pôde resistir àquele rapagão que lhe lançava aos ouvidos palavras obscenas que faziam seu sangue mais quente, sua vista turvar-se. Diabos! Beto sabia usar as palavras nessas horas. Não aguentou. Que merda! Depois de chupar a cana, só deixou o bagaço. Mas nada disso Tomás saberia se não fossem as más línguas desse povo miserável. Deve ter sido a Margarida que a denunciou. Sabia de sua queda por Tomás. Sacana era ela. Ia pagar caro. Mas primeiro tinha que resolver as coisas com o noivo. Ele era bom, saberia entendê-la.
Marcaram encontro. Por volta das nove era o combinado. Uma praça, lugar tranquilo, ninguém para chateá-los. Sim, Tomás a perdoaria.
Ao virar a esquina, viu o vulto enorme que se desenhava no meio da rua. Ante a imagem, estremeceu. Mas ao invés de sua frágil constituição ser envolvida por dedos calejados de pedreiro profissional (e dos bons), nas mãos dele se desenhava um buquê de flores. Suspirou aliviada e sorriu diante daquela visão acalentadora. Não mostrou o sorriso aberto, espontâneo, que todos conheciam, mas um sorriso tímido, de moça arrependida, com vontade de reparar o erro.
– Boa noite, Tomás. Como vai?
– Dentro do possível. – Fez um gesto no qual abria os braços e espalmava as mãos, dando a entender que não tinha outra saída.
– Podemos conversar?
– Claro.
– Que bom que você me entende. Outro não teria essa atitude. Você sabe compreender as pessoas.
As palavras não saíram de um jato, como ela gostava de falar, mas aos poucos, com intervalos, na ânsia de estudar a acolhida do outro.
– Acho que sei.
Sentaram no banco. Ela mirava de rabo de olho aquele corpanzil a seu lado e se lembrou de suas atitudes que tanto a irritavam. Aquela posição, por exemplo. Dava-lhe nos nervos ver todo o tronco do homem jogado para a frente, os braços descansando nas coxas grossas, a barriga ganhando volume, desleixada. Talvez fosse a ausência dessa postura serviçal que a tenha atraído em Beto. Os gestos do outro eram os de quem tinha domínio total da situação. Decidido, o sujeito. Peito estufado como um fauno, parecia estar sempre pronto ao acasalamento.
– Fraqueza! Um momento de fraqueza apenas – ela disse, desfazendo-se do constrangimento que impunha o silêncio forçado.
E num tom mais ameno:
– Amo você.
Tomás quieto, o buquê do lado. Ele passava o dedo pela aliança de noivado.
– Nunca a tirei. Em nenhum momento a tirei.
Judite se enterneceu.
– Que lindo!
E fez questão de mostrar o dedo, em alguns dias nu, desta vez vestido para o noivado. Passou a mão direita em seu rosto, o relevo da aliança num carinho contido.
Tomás pegou o buquê e o entregou.
– Estava me esquecendo. É pra você.
Judite fez cara de quem não esperava, como se aquelas flores houvessem surgido do nada:
– São lindas!
Agradeceu com um abraço forte.
Ao longe ouviu o apito do trem.
– Lembra daquela viagem ao Pantanal? – ela recordou.
– Lembro.
– Que doideira.
– Foi mesmo.
Ele se levantou e começou a caminhar. Ela mais do que depressa o acompanhou. Próximo dali passava a linha férrea. Caminharam alguns metros em silêncio. Judite tentava, ansiosa, captar no olhar de Tomás o que se passava em seu coração. De súbito ele parou e ficou quieto.
– Vai ficar assim, mudo?
Ele olhou bem nos olhos dela e disse:
– Você me ama?
– Amo. E você? – retrucou ela, num tom humorado.
– Também te amo.
E a empurrou contra os trilhos enquanto o trem cortava a noite e suas engrenagens gritavam em desespero.