A Enfermeira (Finalista no Prêmio Sesc de Contos Machado de Assis - 2009)
Um copo na cabeceira: vazio; um livro próximo: lido; um vaso no canto com uma flor morta; um calor insuportável: verão; um corpo antes viril, agora, enfermo! Plínio olha ao redor e nada poderia ser mais deprimente do que um quarto de hospital. Tudo branco e o que parecia paz era a encarnação da loucura. Olha os trajes e sente como se o tivessem atado ao leito. Mas não, estava livre, eram as forças que insistiam em não voltar. Olhou os braços. Não sabia ao certo quando a pele começou a se tornar flácida. Fora de repente, da água ao vinho. Junto à flacidez veio sua companheira inseparável: as rugas. A vitalidade física de que tanto se orgulhava foi se perdendo ora aqui, ora ali, no passar dos dias. A libido, por sua vez, jogava suas últimas cartas, ou não jogava: blefava a cada lance mais ousado.
Um vulto o chama à realidade. Já não sabia a quem dar bom-dia. A cada turno novos enfermeiros surgiam, com os quais tinha pouco interesse em travar amizade. Aquela que acaba de entrar era mais uma dentre tantas enfermeiras, recém formadas, e que lhe pareciam sempre dispostas a se envolver com o primeiro médico que lhes desse confiança. Não se lembrava de tê-la visto antes.
– Bom-dia. O senhor precisa de algo?
– De uma corda.
– Corda!
– Sim, menina, corda. Quero me enforcar.
– Ora, que besteira. Não seja melodramático. Não se sente bem?
– Me sinto todos os dias péssimo, e não estou nem um pouco disposto a melhorar.
– O senhor precisa de companhia.
– Gosto assim. Não quero ver ninguém se lamentando por perto. Eu sou o único que tenho esse direito.
– Postura egoísta essa sua, hein!
– Talvez.
– Me disseram que tem uma filha.
– Ex-filha.
– Não existe ex neste caso.
– Inventei agora. Vou pedir ao Aurélio os créditos.
Ela sorria enquanto observava o soro caindo em gotículas; parecia contá-los.
– Quando vão tirar essa porcaria?
– Quando o médico ordenar.
E sempre a sorrir, fez algumas anotações. Plínio, de mau humor, não deixara de notar os movimentos da moça. Ela, enquanto guardava o aparelho, viu um livro sobre a mesinha de cabeceira e, para surpresa dele, perguntou:
– Gosta de ler?
– Gosto. Talvez a única coisa que atualmente me dê prazer. E você – devolveu a pergunta à moça em tom irritado, como se ela o tivesse ofendido. Mas Eulália não se deixava alterar.
– Gosto. Mas não esse. Acho muito chato. Prefiro os românticos.
– Bobagens. Água-com-açúcar que de tão doce enjoa. Sabia você que se trata de um dos maiores escritores do país?
– Pode ser, mas nunca gostei.
– Vocês jovens não gostam do que é velho, mas tudo é questão de se acostumar. Não são textos longos. É um livro de contos.
Plínio ergueu o livro sobre sua cabeça e mostrou o título: Contos Consagrados. E passou a folhear o pequeno volume de Machado de Assis.
– Qual seu nome, moça?
– Eulália.
– Quer que eu leia pra você? – continuou, em tom mais ameno. – Talvez passe a gostar.
– Não, obrigada, preciso ir.
– Num outro momento então.
– Talvez.
Eulália colocou o aparelho sob o braço e saiu.
•
Eulália reapareceu dois dias depois. Trabalhava um dia sim outro não. Examinou o paciente de acordo com as ordens médicas e já se retirava, mas Plínio a reteve.
– E hoje. Não quer ouvir uma das histórias machadianas?
– O senhor vai me desculpar, mas agora...
– Eu sei, eu sei, você está trabalhando. Mas vou ler o início de uma e você me diz se gostou. Não precisa ficar até o fim.
– Tudo bem.
Plínio folheou as primeiras páginas. Olhou o índice. Na sua opinião, os dois textos iniciais seriam um tanto áridos para o paladar da moça. Então foi direto ao terceiro. Antes de lê-lo, perguntou:
– Gosta que lhe vejam a sorte?
– Não. Não acredito nisso.
– Nem eu.
E passou ao livro:
– Essa história é de um casal que... Bom, acho melhor eu ler.
Plínio pigarreou, deu duas tossidinhas e iniciou a leitura. Eulália percebeu que ele mudou o tom de voz. Ficou mais solene, dando maior entonação. Ele queria ler só uma introdução, fazendo algumas explicações aqui, outras ali, mas se empolgou e foi até o final do texto. Seguiria ao próximo se Eulália não o interrompesse:
– Preciso ir. Desculpe.
– Não gostou?
– Não é isso. Achei muito interessante, mas trágico. E depois a previsão da cartomante não se realizou.
– Pra você ver. É o destino que se manifesta pelas mais tortuosas e estreitas vias. Caso Camilo não tivesse ficado sem saída justamente perto da casa da cartomante, quem sabe seu futuro não teria sido outro?
– Que horror! Mas isso não passa de uma historieta. Não é real.
– Dentro dos limites da ficção ela tem uma realidade toda própria. Na verdade a previsão era uma sentença de morte.
– É verdade, mas tenho que ir. Já me demorei mais do que deveria.
Eulália saiu. Plínio sentiu pela primeira vez que naquele hospício ainda poderia encontrar alma fértil que pudesse ser semeada. E pela primeira vez depois de longos anos, dormiu com um sorriso no canto da boca.
•
Os dias seguiam lentos e os enfermeiros continuavam alternando os turnos. A cada novo funcionário, Plínio fechava a cara e não tinha conversa. Quando se resolvia a falar era para reclamar. Seus impropérios iam das toalhas que lhe pareciam sempre sujas ao banheiro que antes de usá-lo queria impecável. Mas com a chegada de Eulália algo indefinido se instalava e uma leve satisfação traía um nervosismo adolescente.
– E hoje. Pode?
– Pode.
Então ele se apossava do livro e lia com a postura costumeira. Ela sorria do seu jeito.
– Parece que está numa tribuna. Relaxe.
– Mas estou relaxado.
– Não parece.
– Está gostando?
– Estou. Não são tão ruins como eu imaginava.
– O que eu lhe disse? É falta de prática, meu bem. Tudo que é totalmente novo nos espanta.
Ele se enganava ou ela ficou levemente vermelha com o seu “meu bem”? Talvez se enganasse. A pele morena de Eulália escondia qualquer suposição mais ligeira. Plínio continuou seu sarau. Leu a história do menino que ao esperar o colega para irem à Missa do Galo trava uma conversa com uma mulher casada e traída.
– Essa Conceição, coitada. Me faz lembrar alguém.
– E quem seria essa pessoa?
– Uma vizinha minha amiga.
– Veja você que coincidência.
– Não acredito em coincidências.
– Não. Então o que seria?
– Acredito que tudo tem um porquê.
– E qual seria este?
– Não sei dizer com precisão. Mas essa Conceição da história. Ela sofre calada; não reage, tudo para manter as aparências.
– São outros tempos. Talvez hoje essa história não fosse possível.
– Será?
– E poderia?
– Quando você leu sobre ela, não quis interrompê-lo. Mas fiquei intrigada com as semelhanças.
– Por quê? Essa sua vizinha também tem um marido que vai semanalmente ao teatro?
Nesse ponto Plínio sorriu com o jogo de palavras. Gostava dessas construções subentendidas, mas temeu desgostá-la.
– Não, não é isso. Seu marido é muito mulherengo e, no entanto, não consegue se separar. Gosta dele apesar de tudo.
– Mas somos pretensos a gostar daquilo que nos é hostil, adverso; aquilo que nos faz mal.
– O senhor é casado?
– Divorciado.
– Amava sua esposa?
– Se você entende por amar a tolerância recíproca, acho que sim.
– E sua filha, por que não a vê?
– Somos muito parecidos. Nos repelimos.
– É uma pena. Não consigo me ver longe dos meus pais.
E se foi.
•
O aparecimento de Eulália tornou os dias de Plínio menos melancólicos. À rabugice dele contrapunha a jovialidade e alegria desinteressada dela. Mas com ela soube ser mais indulgente. Até aos demais enfermeiros coube uma parcela de boa vontade.
– O velhote abaixou a crista – comentou um deles ao colega.
De fato. Plínio olhava-os com menos arrogância, mas não deixava de reclamar das toalhas, do banheiro e, de uns tempos pra cá, da comida.
– Comida insossa! – E empurrava o prato ao ponto de deixá-lo ir ao chão.
Eulália seguia no seu vaivém não de toda indiferente à maneira como ele lhe dirigia a palavra e o modo como lhe agradecia a companhia. Quando as atribulações do trabalho davam uma trégua, parava e ficava a ouvi-lo a ler e reler o único volume que mantinha no quarto. Em alguns casos ela mesma pedia para que voltasse ao conto que mais a agradara.
– Gostei daquela da agulha.
– Ah, claro.
E Plínio, pacientemente, relia “Um Apólogo”. Volta e meia lançava-lhe um olhar lânguido ao mesmo tempo em que continuava sua leitura sem se dar ao trabalho de olhar o texto, já há muito decorado. Eulália, por seu turno, seguia cada palavra e, de vez em quando, arriscava dar sua opinião. Plínio, por sua vez, explicava-lhe algumas passagens mais controversas. Ela não gostara do “Enfermeiro”, talvez por se ver na pele do protagonista.
Noutro dia chegou cabisbaixa e pediu que relesse “A Cartomante”. Plínio notou:
– O que aconteceu? Andou lendo a sorte?
– Não, minha vizinha. Seu marido extrapolou. Pegou o filho-da-mãe com uma das “suas” dentro do carro perto da casa deles.
– Que desaforo. E aí?
– Aí o quê?
– O que ela fez?
– Nada. O que haveria de fazer?
– Não sei. Xingar, brigar, puxar os cabelos da dita. Vocês mulheres gostam de puxar os cabelos numa briga.
– Ela não é de fazer baixaria.
– Acredito que não. Mas temos que fazer algo nessas circunstâncias. E você por que não a ajudou?
– Como?
– Conversando com ela, lhe transmitindo uma palavra amiga. Você seria capaz, Eulália.
Nesse ponto ela desatou a chorar.
– Como fazer algo? Você não entende. Como você pode me dizer isso se nem ao menos consegue falar com sua filha?
– Ora, o que está dizendo? Eu só quero ajudar sua amiga...
Plínio emudeceu. Viu nos olhos marejados dela, no seu corpo que tremia todo, na sua aparente raiva contra ele. Sim, tudo ele via.
– Ela não tem forças para reagir.
Então houve um entendimento mudo entre os dois. Ela se recompôs e saiu.
•
Na manhã seguinte era sua folga. Já acostumado com suas ausências, Plínio se preparava sempre para o pior. Nunca viu tantos enfermeiros num curto espaço de tempo. Mudava-se de funcionário como se muda de roupa. E quando sabia que seria ela, suas atitudes automaticamente se transformavam sem que ele as percebesse. Era sempre uma expectativa nova. Mas naquele dia, qual não foi sua surpresa quando pela porta entrou uma senhora com ares de general e foi logo dizendo:
– Hoje sou eu. E não me venha com desaforo.
Na certa já tinham avisado com quem ela ia tratar.
– Quem é você?
– Norma.
– E cadê a Eulália?
– Não veio e acho que não vem mais.
– Mas por quê?
– Eu vou lá saber da vida dos outros? Mas deve ser coisa com o marido. Essas moças vivem quebrando a cara por esses vagabundos.
Plínio ameaçou reclamar com a gerência. Afinal de contas pagava e queria a “sua” enfermeira, mas viu que seria inútil. Eulália não voltaria. Algo lhe dizia isso.
Plínio deitou desanimado enquanto o livro ia ao chão.
– O senhor não vai ler mais?
– Não, a história acabou.