Encontros e Desencontros
Gabriel Youth começou ainda no trem a primeira carta para Ninna, e a enviou do porto onde embarcaria, rumo ao continente, para lutar na guerra. E até o fim de 1914, pode escrever para ela, e dela receber correspondências, inclusive uma foto, que tiraram juntos, na festa de Ano Novo, em casa de sir Jasper, seu avô. Após os primeiros três meses de 1915, as cartas dela estavam chegando com um certo atraso, num pacote amarrado com barbante, e as palavras nelas contidas não eram muito animadoras. Ninna parecia não senti-lo próximo de si, dizia estar mais difícil a cada dia viver naquela solidão. No mês de dezembro de 1914, a tia com quem morava em Manchester havia falecido, segundo uma carta daquele mês. Ela dizia ainda amá-lo muito, mas que não sabia até quando agüentaria ficar sozinha, sobretudo convivendo com a incerteza de seu retorno. Gabriel, então, respondeu a cada uma das cartas, da melhor forma que podia, falava das batalhas em que combatera, dizia que quando estava em campo aberto, fora das trincheiras, em meio à terra de ninguém, tiros de metralhadoras e explosões de granadas por todos os lados, colegas tombando, mortos, ou gravemente feridos, pelo caminho, e tudo o que o fazia seguir era seu amor por ela, que sentia ela consigo a dar-lhe forças para continuar.
Nos meses seguintes, as cartas dela vinham se tornando mais escassas, não revelavam o porquê, a última falava de um bondoso senhor que ela conhecera, e que a estava ajudando, agora que estava vivendo sozinha na casa da tia. Gabriel sentiu uma dorzinha em seu peito, ao ler essas palavras, mas procurou afastar as incertezas que começavam a insinuar-se em sua mente, quando escreveu novamente para ela. Não sabia se era a demora, ou a possibilidade de extravio de cartas, no meio de uma guerra, como muito provavelmente acontecia, mas tinha a nítida impressão de que as cartas que recebia de Ninna estavam diminuindo, não eram mais tão numerosas no pacote amarrado com barbante, nem com tantas páginas quanto antes, nem mesmo falava tanto que o amava, enquanto que ele dizia amá-la em quase todas as linhas de todas as cartas.
Em 1917, Gabriel saiu das trincheiras, e nem assim recebeu mais cartas de Ninna. Aliás, não recebia mais nenhuma carta sua! Não sabia por que ela parara. Ela não lhe respondia mais, mas provavelmente ainda morava no mesmo lugar, pois suas cartas não eram devolvidas. Nesse ano, Gabriel se preocupou menos com o “silêncio” dela, pois estava envolvido com a sua segunda paixão, a de voar. Em meio a batalhas, bombardeios em territórios inimigos, escapadas do fogo inimigo, etc. Gabriel transferiu-se para a Real Força Aérea, que estava nascendo, naquele momento.
Próximo do fim da guerra, em 1918, Gabriel estava numa batalha aérea, enfrentando o lendário Barão Vermelho, quando seu avião foi atingido e abatido. Ele sobreviveu, mas sua perna direita quebrou-se em três partes, e a esquerda estava crivada de estilhaços da própria aeronave. Por isso, teve de ser dispensado do serviço militar, e fora mandado para casa. Também não poderia mais andar normalmente, precisaria usar muletas pelo resto da vida, segundo um oficial médico.
De volta para Manchester, na casa de seu avô, sir Jasper Blackmore, esperava que Ninna viesse vê-lo, pois pouco antes havia mandado uma carta, contando o que havia acontecido, mas explicando que estava de volta, como lhe prometera, antes de partir. Passaram-se muitos dias sem que ela aparecesse, nem mesmo havia lhe recebido na estação ferroviária, quando chegou. Estava temendo que sua carta talvez tivesse sido extraviada, e que ela estivesse ainda esperando por notícias suas. Numa manhã fria de terça-feira, quando decidira escrever um bilhete para mandar enviar-lhe, já que ainda não podia deixar a cama, sua mãe veio com uma carta, a última carta que escrevera, antes de voltar para sua cidade. Havia sido devolvida pelo correio, dizia que o destinatário – no caso, Ninna – tinha se mudado, e não tinha informado novo endereço. Olhando consternado para a mãe, Gabriel mostrou-lhe a carta: “Eu... pensei que tinha se extraviado... quando...?” Helen disse-lhe então que a garota havia ido embora há mais de um mês, com um senhor aparentemente mais velho, para casar-se e morar nas colônias, que o padre Johnson ouvira dizer que tinha ido para a Índia, ou a China. Gabriel sentira, naquela época, como se um tiro de canhão tivesse lhe atravessado o peito, seu coração doía terrivelmente. Perdera o ânimo para tudo, ficava boa parte dos dias enfurnado dentro de casa, como um velho aleijado, começou a usar morfina, com a desculpa de suportar melhor as dores causadas pelos ferimentos de guerra. Sua intenção verdadeira era acabar com a dor que corroía seu peito.
Há muito tempo que Gabriel não sabe o que é dor, pelo menos dor física. Suas pernas não parecem ter nenhum problema, ou atrofia. Mas ele lembra-se do que aconteceu, de como seu avião foi abatido pela artilharia inimiga, depois de derrubar o Barão. Não lembrava de ter conhecido tantos oponentes leais como ele. De qualquer forma, aquilo tudo era como se fosse uma outra vida, e efetivamente, para ele, assim o era. Afinal, naqueles tempos ele era humano ainda. Jovem, sonhador e ingênuo, por isso mesmo cheio de falhas. Agora era parasita, pertencia a outra espécie, era um vampiro... mas bem mais maduro – ao menos é o que ele pensa.
Quanto à dor de amor, bem... Gabriel lembrava vagamente dessa parte da sua vida humana, e o romantismo tinha sido praticamente deixado de lado em sua vida como vampiro. Não havia encontrado motivos para dar alguma importância a isso. E também não via mais muita importância no que tivera com Ninna Stepford. Sequer pensava nela, desde que se tornara vampiro! E sequer imaginava vê-la novamente. Principalmente ali, na Praça da Figueira, em Florianópolis. A viu aproximar-se graciosamente, com passos firmes, um sorriso confiante e o velho gesto de mexer no cabelo com a mão, não mais tão gracioso, ou encantador. Ainda tinha o olhar sereno e angelical, mas não o fazia sentir as mãos suar, nem nada.
Ninna agora estava bem perto, e a reação de Gabriel, surpreendeu-a de modo que seu sorriso murchou e seus gestos tornaram-se vacilantes, seus olhos perderam a estudada serenidade, mexiam nervosamente para todos os lados, notando a atenção que, de repente, estavam atraindo para si.
“NÃO ACREDITO! MENINA, VOCÊ AQUI!? NÃO ACREDITOOOO!! MEU, CÊ NÃO TÁ ENTENDENDO!! NOSSA, VOCÊ TÁ AQUI MESMO!! UAU, NOSSA, MENINA, COMO VOCÊ TÁ BEM!!” sua voz parecia ser ouvida por toda praça, e até além, quem sabe mesmo na catedral. Ninna recuou um pouco, e Gabriel pegou sua mão, o sorriso parecia muito franco, os olhos totalmente negros pareciam brilhar. E seus trejeitos não lembravam em nada o homem que conhecera outrora. Com um sorriso verdadeiramente encabulado, Ninna murmurou: “Não esperava uma recepção tão... calorosa...” riu nervosamente. “Está mesmo surpreso em me ver?”
Gabriel encolheu os olhos, de repente opacos e sem expressão. Nos seus lábios ainda brincava um sorriso, mas não franco, honesto, ou o estupidamente apaixonado de uns noventa anos atrás... na verdade, era um sorriso de um sarcasmo irritante.
“Na verdade não. Mas não podia te decepcionar...”
Ninna balançou a cabeça afirmativamente, desviando os olhos. “Eu entendo...” respondeu. “Imaginei que você não ficaria tão feliz em me ver...” Sorriu, novamente assumindo o seu ar de doce mulher. “Seus olhos, o que...?”, começou a perguntar. O olhar dele pareceu um tanto assustador, e voltou a sorrir-lhe sarcasticamente: “É, eu sei, agora combinam com meus cabelos! Todo mundo diz isso...”
“Você não vai me perguntar o que...” ela tentou insistir, e novamente foi interrompida, grosseira e friamente por Gabriel:
“... o que você está fazendo, por que veio me encontrar, quando chegou? Esse tipo de coisa?” Ela sorriu, um tanto desconcertada, e concordou: “sim, esse tipo de coisa...”
“Pois bem... se acha necessário eu fingir algum interesse...” disse, com um tom enfadonho. Voltou a fitá-la, sorriu-lhe, simulando total interesse: “O que a trouxe a nossa aprazível cidade?”
“Bem...” começou ela, sem saber muito bem o que dizer. “Eu... sei que você talvez esteja ainda magoado comigo...”
“Na verdade, não tenho qualquer sentimento por você. Não sei qual o motivo para você ter aparecido por aqui, e não me importo. Se está sugando o amor de alguém ingênuo demais pra perceber o que você realmente é, ou se talvez veio porque sabia que eu estava por aqui... pra mim tanto faz, dá na mesma, se ficará por perto, ou se vai sumir. Não tenho nada com você e nem você comigo. Se for embora, não precisa se despedir, e se quiser ficar, só cuide pra não estar no meu caminho.”
Ninna não sabia o que dizer, Gabriel viu que ela não tinha nenhuma resposta preparada para aquilo, não conseguia esboçar reação, obviamente não esperava nem tamanha sinceridade. Gabriel sorriu, demonstrou a ela sua satisfação, voltou a caminhar, dizendo apenas “Com licença, que tenho mais o que fazer.”
Juninho não sabia o nome verdadeiro do Braddock. Na verdade, muito pouca gente sabe. Seu pai veio de Santa Catarina, para trabalhar no Pólo Industrial de Manaus, no comecinho da Zona Franca, por volta de 1970, mais ou menos. Braddock ganhou esse apelido ainda menino, na escola, por causa de sua semelhança com o ator americano de filmes de ação, Chuck Norris. Também porque costumava dar roundhouse kicks nos colegas que o chamassem assim. Seu nome era Setembrino Wallauer. Juninho conhecia alguém que conhecia seu Sezefredo Wallauer, pai de Braddock, e que indicou-o a Evangelina. Seu Sezefredo sabia que o filho andava com uma galera perigosa, sabia também o segredo dessa galera, que não era só o tráfico de drogas, os assassinatos por encomenda, etc. Evangelina lhe contou sua história, a morte de dona Luzia Lisboa, tudo o que o filho fizera, juntamente com seus cúmplices. Seu Sezefredo somente suspirou e disse que sabia de tudo que o filho fazia. “Tu queres que eu te ajude a pegar o Setembrino, minha filha, eu sei...” disse o homem com voz cansada. “Mas não vou tá te entregando meu filho. Setembrino morreu faz tempo! Esse Braddock não é meu filho, e ele ainda vai envolver meus irmãos e minha mãe nos problemas dessa galera da Noite Preta.”
Seu Sezefredo deu o endereço da avó de Braddock, dona Jacira, morava em Florianópolis, há uns 20 anos fixara residência próximo a lagoa da Conceição. Tinha certeza de que o filho vampiro iria procurá-la, e que também não contaria o motivo para visitá-la. A galera não se separava, seu Sezefredo os conhecia desde garotos, Braddock tinha os outros três comparsas mais como sua família que ele mesmo, a mãe e os irmãos. Onde ele estivesse, com certeza também estariam os outros.
Evangelina chegara em Florianópolis já à tardinha, não conhecia nada da cidade, nem ninguém. Tinha encontrado enormes dificuldades para achar o hotelzinho onde havia feito reserva uns dias antes, no centro histórico da cidade. Não imaginava que a ilha de Santa Catarina fosse tão grande, nem fazia idéia de como chegar até a lagoa. Precisava urgentemente de um guia, alguém nativo da região, que conhecesse todo o município, ou pelo menos o lugar aonde queria chegar.
A noite estava quente e úmida, muita gente se demorava um pouco mais pelas ruas, protelando o retorno para casa. Viu alguns argentinos, que fizeram gracejos um tanto de mau-gosto, ao passarem por ela. Parou num barzinho, pediu uma água mineral, apenas para fazer hora por ali. Na TV viu as últimas notícias sobre os estranhos assassinatos que ainda não haviam sido resolvidos pela polícia. Ouviu alguém comentar que a polícia não tinha capacidade para resolver. Viu que era observada por um rapaz, aparentando pouco mais de 20 anos, cabelos loiros, um belo sorriso, olhos claros, pareciam muito límpidos. Ele deu de ombros, parecendo-lhe de uma forma muito graciosa.
“Eles quase nunca desvendam esses crimes misteriosos!”, disse, justificando-se pelo comentário. Evangelina sorriu ironicamente, lançou-lhe um olhar risonho, e respondeu: “Esse é o nosso Brasil!” O rapaz deu uma risada deliciada, fez um gesto com a mão, pedindo desculpas: “Não foi minha intenção ofender a polícia do seu país...”
“Eu sei que não”, disse ela, rindo do aparente encabulamento dele. Ele disse de repente: “Você também não é daqui, é?” Evangelina sorriu, “Você é observador! Cheguei hoje, vim de Manaus...”
“Capital do Amazonas?” perguntou ele, parecendo surpreso. Ela acenou positivamente com a cabeça. “Veio de férias, à passeio?”
“Vim procurar alguém...” respondeu ela.
“Um namorado de internet, talvez?”
Evangelina riu e balançou a cabeça negativamente: “Não exatamente...” disse, baixando os olhos, um pouco contrafeita.
“Desculpe... não quis me intrometer!” disse ele, num tom de escusa. “Tudo bem... não esquente!” disse ela, sorrindo-lhe novamente. Continuou: “O problema agora é que não conheço muito bem a cidade... precisava encontrar um lugar...”
“Eu estou há um bom tempo na cidade”, disse ele, solicitamente. “Talvez conheça o lugar que você quer encontrar... gostaria que fosse teu guia turístico?”
Ela riu: “Gostaria muito, é...”
“Ah!” bateu na própria testa com a palma dos dedos. Apertou sua mão novamente: “Desculpe, não me apresentei... sou Edmonton McCulling... mas pode me chamar Ed!”
Evangelina deu uma risada doce: “Encantada, Ed!”, respondeu, apertando calorosamente a mão dele.