Passado Abaixo (ou Biografias de um Sabonete)
[Preâmbulo: Na decisão, escolhe-se a alternativa que aparenta ser a mais apta à satisfação da vontade. Frustrada a expectativa, aumenta-se o valor das alternativas descartadas, que assolam o optante em relação a seu passado.]
Mais uma vez era aberta a pesada porta metálica da loja. Era a primeira vez, no entanto, que da rua se podia ver aquele sabonete. Não que houvesse algo especial nele. Pelo contrário, aos seus lados e abaixo, estavam dúzias de outros idênticos. O que nunca ocorrera antes, porém, é não haver nenhum sobre si. Assim, o passar do dia foi ordinário para quase tudo e todos que por lá transitaram, mas não para esse sabonete. Pela primeira vez foi considerado uma opção de compra. Ora, sendo a venda a finalidade que o punha ali, tratava-se de profunda diferença. Mas o que é comum entre as coisas nem sempre lhes atribui a mesma rotina. Nessa loja, muito se podia dizer das distinções entre o cotidiano de cada um dos produtos que, ao fim, estava lá para o mesmo propósito: alienação. Veja o caso do perfume, por exemplo, logo ali tão perto. Do mesmo tipo, no máximo três caixas ficavam juntas. Por conta da variedade, o tempo gasto na escolha dos perfumes era sempre muito maior do que na dos sabonetes. Isso certamente lhes dava mais dignidade. Afinal de contas, são alternativas para uma escolha que tem basicamente a mesma contrapartida: entrega de dinheiro. Pois bem, se o substancial de tudo o que ali se encontra é ser objeto de uma decisão, nada mais natural do que entender como mais digno aquilo em que se deposita mais esforço para a escolha.
Ainda sobre a diferença entre os perfumes e os sabonetes, enquanto diversas pessoas - dos mais variados sexos, idades, e estilos - examinaram cada uma das caixas de perfume vizinhas, aquele sabonete, em particular, foi considerado apenas por duas pessoas. A primeira, uma jovem de quase 40 anos, vestindo terninho muito alinhado ao seu corpo - ainda atraente mesmo para jovens recém saídos da puberdade -, com postura decidida, como a de quem está acostumada a liderar. E foi exatamente essa personalidade que a impediu de levar aquele sabonete. Sua mão seguia uma linha perfeitamente reta na direção do sabonete. Um leve choque com um dos transeuntes, no entanto, impediu que se encontrassem. Como a jovem queria apenas um sabonete qualquer entre os tantos que lá havia, apanhou o que estava na outra ponta da nova linha, igualmente reta, assumida por sua mão. Certamente esse não teria sido o desfecho do encontro se se tratasse de um perfume.
Alguns bons instantes após, porém, um novo encontro ocorreu. Dessa vez, um efetivo. Nesse caso, não era tão fácil descrever o personagem. Não porque era dotado de personalidade muito singular, mas pelo oposto. De tão comum, era difícil identificar traços que o individualizavam. Era apenas um prosaico. Para apanhar o sabonete, sua mão não descreveu qualquer figura conhecida da geometria. Antes, caiu quase inerte sobre a pilha de sabonetes e se arrastou completamente desinteressada por diversos deles. O fechamento dos dedos para apanhar aquele específico sabonete foi tão casuístico que faria dos mais otimistas teóricos do comportamento humano tornar-se um cético sobre a possibilidade de encontrar leis que os antecipe. As demais características do prosaico eram igualmente desprovidas de ânimo. Era um vulgar desinteressante. Ao fim, no entanto, parece ter sido o casamento ideal para o sabonete, igualmente ordinário.
Os dois seguiram longo caminho dentro de um ônibus lotado. O sabonete estava na companhia de alguns outros poucos itens banais que satisfazem apenas necessidades corriqueiras de seus usuários, e que por isso mesmo nem são notados no cotidiano. Essa certamente não teria sido a situação do sabonete se fosse a jovem quem o tivesse pego, ou mesmo se fosse um perfume. No mínimo estaria na companhia de um. Por outro lado, se estivesse com objetos de maior nobreza, mais em xeque estaria seu próprio pedigree. Assim, talvez o sabonete tivesse mais valor para o prosaico do que para a jovem, mesmo desempenhando a mesma função. Nesse caso, o apreço provém de virtude que retira de si mesmo, e não do contexto em que se encontra. Muito conforto espiritual já foi encontrado no que se tornou máxima popular segundo a qual a companhia determina o caráter do acompanhado. Dizer com quem se anda, aqui, possui conotação ambígua. Se os acompanhantes não chegam a ter grande dignidade para transferir ao sabonete, ao menos são a causa de aquela que lhe é intrínseca ser enaltecida.
Chegaram ao seu destino. Era abrigo humilde, como se deveria imaginar. Na verdade, não passava de um barracão. Talvez fosse razoável esperar um pouco mais de distinção, mesmo tendo em conta que era o refúgio do prosaico. Essa expectativa era cabível mesmo desconsiderando qualquer comparação com a situação de a compradora ter sido a jovem, que provavelmente surpreenderia pelo requinte. O interior da edificação, no entanto, era aconchegante. Tratava-se mesmo de um lar. Viviam ali a esposa do prosaico e sua filha, bem como alguém ligado à família por vínculos tão oblíquos que é melhor chamá-lo apenas de aparentado. Era um núcleo familiar bastante pequeno, o que é incomum para esse ambiente sócio-econômico. Nesse ponto, a situação não seria diferente se tivesse sido levado pela jovem. Será mesmo que não? Na casa do prosaico, os habitantes não demonstravam grande ânimo com a vida. Na da jovem, com mais ou com menos pessoas, a situação decerto seria outra.
Após esse breve primeiro encontro, o sabonete foi acostado em um enorme armário do banheiro, único da residência, e por lá permaneceu abandonado por algum tempo. Era um banheiro simples, quase grosseiro. Talvez fosse mais apropriado para um sabão, o que diminuía o já baixo mérito então desfrutado pelo sabonete. Deixando isso de lado, o que estava reservado para ele? Pois, se o ambiente não era muito promissor, o contato com seus usuários poderia ser bastante gratificante. A esposa era extremamente dedicada ao trabalho doméstico para fazer daquela pobre residência um local mais agradável. Disso resultava grande sujeira em seu corpo, sendo a que mais necessitava do sabonete. Para ela, ele poderia representar a purificação que lhe daria o merecimento do usufruto do próprio labor. Na seqüência, a maior glória viria da limpeza do corpo da filha, comungando a purgação da sujeira tangível com a pureza natural da alma da inocente criança. A seguir, vinha o aparentado, a quem o sabonete poderia servir de meio para reforçar seu vínculo com a família. No momento do banho, todos, inclusive o aparentado, usariam o mesmo sabonete. Este seria um dos tão escassos elementos comuns entre eles. Por fim, havia o prosaico. De tão ordinário que era, serviria de descanso ao próprio sabonete: a par de todas as nobres funções que desempenharia, teria a chance de rotineiramente passar por uma experiência comum.
Após alguns dias passados dentro daquele armário, a esposa desempacotou o sabonete e o usou pela primeira vez. De fato, seu corpo estava imundo. O curioso é que, em algumas partes, formava-se espessa camada de sujeira, verdadeira casca. Parecia o começo ideal. Mas o banho logo mostrou a justificativa da sujidade. O sabonete mal fora usado. A esposa tinha verdadeira relação de simbiose com o lixo que se ia juntando na casa. O tormentoso àquela criatura era a limpeza. Mas ao sabonete ainda havia três boas oportunidades. A filha foi a próxima, e prometia ser o verdadeiro começo. Apesar da pouca idade, logo se viu que nada havia de inocente naquela menina. As brincadeiras que fazia durante o banho, nas quais envolvia o sabonete, eram próprias de adultos, e dos não muito comportados. Não havia pureza ali, mas a mais intensa malícia unindo corpo e alma. Faltava ao sabonete qualquer vocação para remover esse tipo de sujeira. O aparentado parecia promissor, mas, agora, exatamente por não pertencer propriamente àquele grupo de degenerados. Acontece que, justamente por isso, antes de usar o sabonete em seu corpo, deixava a água escorrer sobre ele até que boa parte de sua superfície fosse gasta. Para o aparentado, era como se fosse um novo sabonete, apenas seu. O motivo da repulsa era de todo compreensível, mas o desgaste sofrido pelo sabonete não parecia proporcional. Quanto ao prosaico, última esperança, pôde-se perceber em poucos segundos que ali nada havia de ordinário. O homem era obsessivo e metódico. O ritual era tão enervante que em nada podia representar descanso.
Foi nesse ritmo opressor que o sabonete ia passando ralo abaixo. Houve ainda uma ou outra situação que se afigurou, de início, como potencialmente satisfatória. Tais foram os casos das eventuais visitas que o usaram. Essas, no entanto, tratavam o sabonete com nojo, parecendo até que sabiam dos detalhes sórdidos do seu uso cotidiano. Também teve vezes em que foi usado na cozinha, mas apenas para limpar louças, panelas e talheres - finalidade muito aquém de sua própria vocação. Se tivesse sido pego pela jovem, certamente teria destino mais nobre. Se fosse um perfume... aí sim! Mas não foi nada disso, e terminou seus dias quase totalmente dissolvido e anexado artificialmente a outro sabonete, como uma muleta sua.
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Mais uma vez era aberta a pesada porta metálica da loja. Era a primeira vez, no entanto, que da rua se podia ver aquele sabonete. Não que houvesse algo especial nele. Ao contrário, aos seus lados e abaixo, estavam dúzias de outros idênticos. O que nunca ocorrera, porém, é que não havia nenhum sobre si. E rapidamente surgiu a pessoa que o escolheu, emprestando-lhe especial dignidade. Foi uma jovem de quase 40 anos, vestindo terninho muito alinhado ao seu corpo - ainda atraente mesmo para jovens recém saídos da puberdade -, com postura decidida, como a de quem está acostumada a liderar. E foi expressando essa personalidade que levou aquele sabonete. Sua mão seguia uma linha perfeitamente reta na direção do sabonete e, sem haver qualquer distúrbio, alcançou-o com pulso firme e o colocou junto dos demais itens de higiene que constavam da cesta. Lá, havia desodorante, óleo perfumado, creme hidratante e até um perfume. Nesse universo, o sabonete parecia deslocado e sem valor. Se tivesse sido pego por uma das tantas pessoas comuns que por ele passaram, certamente estaria agora em lugar mais condizente com sua natureza. Haveria ao menos o potencial de apresentar algum destaque.
Foi apenas uma curta caminhada da loja até o apartamento da jovem. Este era bastante amplo e organizado, mas não era um ambiente acolhedor. A jovem morava só, e passava quase todo o tempo fora de casa. Se o sabonete tivesse sido pego por um qualquer, decerto teria toda uma família para servir. Mas essa era realidade muito diversa. Apenas a jovem o usava, sempre tarde da noite e do exato mesmo modo. Como se não bastasse a mesmice, o papel desempenhado pelo sabonete era praticamente irrelevante no procedimento de higiene realizado pela jovem. Ao contrário do sabonete, utilizado de qualquer jeito e com bastante pressa, os óleos e cremes possuíam forma prescrita para serem aplicados e alguns minutos eram gastos com cada um deles. O perfume fornecia o “gran finale” ao ritual. Monotonia e insignificância, portanto, marcaram a existência do sabonete por todo o tempo em que ia passando ralo abaixo, até que foi descartado na lixeira do banheiro junto com dejetos dos mais repugnantes. Não há dúvida de que haveria muito mais valor no sabonete caso tivesse sido pego por um vulgar.