O Bem-nascido

Pouco se sabe sobre a verdadeira origem do nome Jeremias. Alguns acreditam ter raiz etimológica na língua hebraica por volta de 100 a.c. cuja escrita seria algo parecido com Yrme Yahû: “o bem-nascido”. No entanto, para Seu Jeremias, homem negro, 53 anos, pedreiro, morador da favela de Paraisópolis, pouco importava saber sobre esse significado e, na classificação social, Seu Jeremias passava longe do status de “bem-nascido”.

Sexto filho de uma família de nove irmãos, sendo que destes, dois não chegaram a completar o terceiro mês de vida, graças à pobreza e as péssimas condições do sítio Barragem no interior do Piauí, local onde Seu Jeremias nasceu e viveu até os 16 quando decidiu largar tudo, ou quase nada e migrar para São Paulo.

São Paulo é um município brasileiro, capital do Estado que leva este mesmo nome e é considerada a principal cidade do país. Ao menos para os paulistanos bem-nascidos. Em 2010 poderá ter a terceira maior população do planeta. Muito disso devido à chegada de pessoas como Seu Jeremias que deixam seus locais de origem em nome de uma vida menos injusta, mas que terminam morando em pequenos casebres em favelas como a de Paraisópolis parecidos com os do sítio Barragem.

Um barulho que parecia manter-se vivo dentro de sua cabeça, era o que pensava Dona Silvia toda vez que tinha de sair com seu Civic quatro portas, direção hidráulica, barras de proteção lateral, air bag duplo e sistema de GPS. Não parecia dispor de seus 42 anos. Muito branca, cachos bem definidos em longas sessões semanais no Jacques Janine, pele macia e provida de pequenos pelos aloirados que mais lembravam a textura de um pêssego.

Pêssego; fruto do pessegueiro (Prunus pérsica), árvore frutífera originária da china e muito apreciada pelos moradores do condomínio fechado localizado no Morumbi, zona sul de São Paulo, onde mora Dona Silvia, antagonicamente postado ao lado da Paraisópolis.

Buscando eliminar de vez o tormento de ter sua vida em quatro rodas guiada pela desagradável sensação de um som de vidro balançando, Dona Silvia procurou levar seu carro à oficina que fica a poucos quarteirões do seu condomínio. E o trajeto nem precisou chegar ao fim. Ao passar pela Paraisópolis, Dona Silvia teve o nocente vidro esquerdo do seu Civic estourado por uma pedrada certeira. O Barulho cessou.

Um garoto magro, bermudas sujas e blusão esvoaçado que nunca havia comido pêssegos, ou andado de Civic escolheu intuitivamente o carro prata de Dona Silvia para extravasar sua ira. Próximos a ele, outros tantos moradores da comunidade fechavam a rua e queimavam pneus. Mulheres gordas e meninas descabeladas seguravam cartazes pedindo: “Justiça”.

Era manhã de terça-feira de um fevereiro qualquer e os pneus queimavam ao sol em nome de Seu Jeremias, morto com um tiro no peito disparado por um PM que o confundiu com um foragido na noite anterior.

Alexandre Guimarães
Enviado por Alexandre Guimarães em 30/10/2009
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