30 segundos
Naquela manhã, a turma se manteve silenciosa durante toda a aula de História da Ciência. Os alunos talvez estivessem cansados, com preguiça de falar, desejosos de somente ouvir o que a professora dizia. Não que o silêncio fosse uma imposição dela que, ao contrário, até puxava conversa, fazia perguntas, mas o desânimo generalizado chegava mesmo às raias dos diálogos monossilábicos.
Mesmo consciente da passividade geral, devo confessar que me mantinha mudo, compactuando também da apatia coletiva. Desejando compreender tal situação, cheguei a aventar que ninguém se arriscaria a abrir a boca porque sofríamos de misterioso torpor mental, o que nos tornava estupidamente incapazes de dizer qualquer coisa inteligente — e isso não seria nenhum problema se fosse raro acontecer.
Mas tal calmaria era melhor, pois de asneiras bastava o que eu já vinha pensando durante a maior parte do tempo naquela manhã. Como resultado do marasmo eu já tinha rabiscado cinco folhas de meu caderno nas últimas horas. Eram desenhos sem sentido, palavras soltas, frases sem pé nem cabeça que inventei para passar o tempo.
Em certo instante comecei a passar os olhos naquelas folhas, como que admirando e avaliando o quanto já tinha produzido. Ao chegar na terceira folha encontrei uma frase que, como as outras, escrevera à toa, certamente inspirado pela contínua porém cândida voz da professora. Lendo aquelas palavras mais atentamente, fui acometido por uma idéia tentadora, que logo se tornou uma vontade impassível. Porque estivesse no limite de minha inquietude, e talvez só por isso mesmo, tracei naquele exato instante o singelo plano, quase sórdido, cuja execução precisaria ocorrer logo, pois a aula estava perto do fim. Portanto, a idéia deveria ser levada a cabo de imediato.
Por isso, movido por uma coragem e orgulho que só os grandes homens poderiam ter, levantei-me, muito confiante, ao mesmo tempo que olhei para a professora, espalmando a mão direita no ar teatralmente — um delicado sinal para que ela se calasse, o que de fato ocorreu sob alguns olhares curiosos — e após pausa muito breve, sem dar tempo para qualquer indagação sobre o meu repentino gesto, recitei em voz alta:
— “A ciência move-se de sonho e de uma generosa pitada de fantasia!”.
Devo observar que o disse esforçando-me para esconder qualquer tom de deboche, desejando transparecer que citava o pensador mais extraordinário do mundo, de modo que não soasse como algo ridículo. Em meu semblante consegui manter a seriedade tal como faria um ator experiente. Disse-o e, após brevíssima pausa, vendo minha atitude ser saudada por um silêncio mórbido, sentei-me também em silêncio. E enquanto sentava espreitei rápido, de canto de olho, alguns olhares que a mim se dirigiam.
Esse gesto, eu sei, parece algo absolutamente idiota. Mas o que poderia dizer se a essência do plano era justamente chamar a atenção? Aliás, considerado o jovem tímido que era, naquele momento considerei muito sábia a decisão de agir de tal modo, com determinação e bravura e, em troca, receber alguns olhares admirados. Mas houve outros motivos, devo dizer agora, pois não tenho mais porque omitir. Na verdade a maior razão, e por tanto tempo inconfessável — e realmente digo-o com toda a sinceridade — era ser ouvido pela linda garota de olhos azuis que sentava a menos de três metros de mim, a Jane Mara.
Foi pelo secreto interesse que há meses nutria por Jane que, diversas vezes, tentei puxar conversa com ela, mas nossos papos raramente ultrapassavam a marca de cinco palavras. Quiçá — e eis aí a minha razão — o resultado da minha iniciativa maluca tivesse como grato efeito a curiosidade de Jane e, com isso, tornaria possível quebrar a vergonhosa marca. “Eis um cara ousado e inteligente”, essa a mensagem subliminar que eu quis transmitir com meu notável e corajoso gesto.
Lamentavelmente, no entanto, a encantadora Jane pareceu nem ter ouvido. Pior que isso, a maior parte dos olhares transpareciam uma certa hostilidade. Mas era cedo para ter certeza, pois não havia se passado nem cinco segundos, pouco tempo para avaliar as reações que minha atitude produzira. O que vi, porém — e disso estou certo —, primeiro causou-me indignação e, segundos depois, decepção, tanta que o arrependimento me bateu como uma tijolada na testa. Aturdido, notei que aqueles tantos pares de olhos dirigidos a mim pareciam demasiado sérios, tacanhos, até agressivos, como se tivesse sido grande meu atrevimento. Seria assim uma ofensa terrível interromper uma aula para recitar Shakeaspeare? É claro que não, mas afinal de contas não recitei Shakeaspeare, mas sim fiz ressoar uma frase imbecil aos ouvidos de todos. É, talvez fosse mesmo uma ofensa.
Fosse ou não, aqueles olhares me deixaram com raiva. Mas longe de demonstrá-la, retribuí a todos com uma expressão sonsa de “não sei o que está acontecendo”. Só senti meu rosto pegando fogo quando procurei Jane e, vendo-lhe, seus olhos agora expressavam uma espécie de asco mesclado com piedade. "Como pode ser tão idiota?" foi a mensagem subliminar que ela me permitiu entender.
Neste ponto decidi que o melhor era deixar para lá e esquecer o terrível fracasso de meu vergonhoso intento. Sem dúvida era hora de abandonar o barco, quer dizer, a sala. Fácil, poderia avisar que ia no banheiro e ficar bem longe daquela tortura que, até aquele instante, já tinha consumido oito segundos.
Porém, essas angustiantes reflexões foram interrompidas pela professora:
— Quem disse isso?
Sua voz ressoou suave, mas me pegou de surpresa. Parecia uma sentença. Estava nervoso, acuado. Como eu não pensara nisso? Uma das reações possíveis advindas de minha atitude poderia, com probabilidade imensa, ser uma pergunta como "foi você mesmo quem inventou essa frase?".
Um mísero segundo antes e eu poderia ter desistido, escapado de tudo, mas agora me via enredado pelo meu próprio ato insano. Não poderia mais fugir. Precisava retomar as rédeas. O silêncio, agora, alimentava-se da curiosidade coletiva que, por sua vez, tomava proporções cada vez maiores à medida que eu mesmo me fazia refém dele. Dele e do senhor tempo — ambos os verdadeiros protagonistas dos fatos ora narrados. Era só o silêncio e dez segundos transcorridos desde que tudo começou. Percebi então que era preciso pensar muito rápido. Na defensiva diria apenas que aquela frase não passava de meia dúzia de palavras banais que lera de um lugar que não lembrava onde.
— Certo... tudo bem se você não sabe quem disse... — Falou a professora, um tanto hesitante. Tolerância invejável. Disse-o mas mantinha o olhar fixo em mim, intrigada, talvez apenas esperançosa de uma resposta qualquer. Eu, calado. A turma, por sua vez, perscrutava-me, todos calados, de maneira que também me exigiam alguma explicação. As últimas palavras ainda ecoavam na minha cabeça. Outra vez o silêncio.
Eu não deveria dizer isso, pois soa como uma infame falsa modéstia, mas se o meu pesadelo ia pelos treze segundos, as feições de bunda de meus colegas foi o que primeiro anunciou a chegada de novos tempos — ou a grande virada. Afinal, conforme podia notar, as minhas palavras eram esperadas com muita ansiedade por todos. Em razão disso, fui assaltado por súbita sensação de poder, passando a acreditar que meu singelo plano poderia parecer um pouco menos idiota. Foi por isso que sorri discretamente para Jane, razão maior desse episódio e, de maneira instantânea, preparei o improviso. Por isso também a auto-confiança encontrou-me como um milagre, porque reinventei a pose dos grandes homens para reassumir o controle. Levantei-me, circundei a sala com o olhar mais triunfante que já pude lançar e, com muito orgulho, encontrei o autor das palavras, dando assim por encerrado o breve circunlóquio com a resposta dirigida à professora:
— Foi Michael Foucault! — Disse apenas.
Esse, é preciso dizer, foi um grande cara, sim. Filósofo francês, sujeito apreciado em círculos intelectuais, etecetera e tal. Todos sabiam. Michel Foucault ecoava nas paredes. Quebrou o silêncio como um grito de guerra. Uma guerra vencida.
Imediatamente percebi sinais claros de aceitação. Meus colegas pareciam aprovar, inacreditavelmente, a minha escolha. Maravilhado, notei que alguns cenhos se franziram por puro espanto, não por outro motivo que ouvir o nome do fabuloso filósofo. Dezessete segundos.
— Pode repetir a frase? — alguém perguntou.
Não me contive. Subi na cadeira e, munido de um gestual à altura da circunstância, senti-me como se fosse o próprio Foucault entoando as mais sábias palavras durante uma conferência lotada de pensadores:
— “A ciência move-se de sonho e de uma generosa pitada de fantasia”. — E foi lindo! Recitei convencido que aquele brilhante homem escrevera essa frase, embora eu não conseguisse lembrar quando e onde. Mas isso pouco importava, pois vários colegas já balançavam a cabeça em sinal de concordância. Outros sorriam, talvez felizes por aprenderem algo muito importante. Continuei em pé sobre a cadeira, radiante. Funcionou.
— Foucault! Um nobre pensador! — Eu disse, ainda, sem me conter. Queria prolongar por mais alguns segundos o meu triunfo.
Um colega, sujeito baixo e gordo, fez suas mãos se encontrarem no ar, retumbando alto, compassado: as palmas. Nos primeiros quatro segundo, apenas ele aplaudiu, determinado, mas logo o seu exemplo foi seguido. Não foram mais do que sete egundo para todos estarem aplaudindo.
— Viva Foucault! — Gritei.
— Viva Foucault! — Outros gritaram.
Comecei a gesticular para que subissem em suas cadeiras. E, realmente, alguns começaram a subir e, foi muito rápido, não posso nem estimar o tempo que passou para que a maioria já se encontrasse empuleirada, em completo estado de êxtase, aplaudindo Foucault por nos premiar com pensamento tão profundo.
Nesse meio tempo, a professora escrevera a frase no quadro negro para, depois, apreciar, com os olhos agora úmidos, tão bela e espontânea homenagem. Aplaudiu também, sorrindo, fungando, chorosa de felicidade. Que maneira linda de terminar uma aula!
30 segundos se passaram e desci da cadeira, dando por encerrado o fabuloso plano. Sentei-me e notei que Jane olhava-me como se nunca tivesse me visto antes. “Eis um cara ousado e inteligente” diziam os seus olhos. No dia seguinte presenteei-lhe com um livro de Foucault. Ela ficou felicíssima, apesar de uma pontinha de decepção: "Não, não foi nesse que ele publicou aquelas palavras", eu lhe disse. Começamos a namorar mesmo assim.
Pouco menos de um mês depois, numa bela manhã, ela me trocou por outro. Aconteceu depois da aula de História da Cultura, por obra do Juarez, que no final da aula subiu em sua cadeira e recitou o então super-fantástico pensador francês: Bordieu. Demorou cinco minutos!