Ausência

As fotos estavam jogadas sobre a pequena escrivaninha, formando um pequeno monte. Fotos muito antigas, algumas mais desbotadas que outras. Representando pessoas e locais outrora vivos, de cores vibrantes e que agora se apresentavam na forma de imagens borradas e sem brilho. Seres sem alma, apenas um esboço do que foram no passado. Fotos de um período longínquo, que a memória cansada nem lembrava mais. Esforçava-se para reativar a memória, mas somente vinham à sua mente fragmentos do passado, vagas lembranças de sua vida familiar. Às vezes, nem lembrava o nome dos próprios filhos. Tinha tido filhos e deixado seu legado para as futuras gerações? Será que viriam hoje? Viam visitá-lo em raras vezes apenas. Não lembrava quando tinha sido a última vez. Mas hoje era um dia especial, o dia do seu aniversário. Faria setenta e cinco anos hoje!

O enfermeiro do dia já havia trazido o seu café da manhã, que incluía um pequeno bolo embrulhado em papel de presente, um tanto simplório, acompanhado de um cartão com um lacônico, frio e distante "Feliz Aniversário", assinado pelo diretor do asilo. Apertara sua mão de maneira firme, mas friamente. Trouxera junto os remédios da manhã. A medicação para aumentar a força do coração, o comprimido para a pressão e a pílula para melhorar a circulação no cérebro, tudo acompanhado por um copo de água tépida. Agora arrumava a cama trocando os lençóis, como fazia todas as segundas-feiras. Novamente desejou um "Feliz Aniversário" e saiu do quarto, levando consigo a bandeja das medicações e a roupa de cama usada.

As horas e os minutos demoravam a passar, principalmente naqueles momentos em que conseguia reativar a sua memória. Eram breves lapsos temporais que o transportavam para junto dos seus. Lembrava o seu nome, quem era, quantos filhos tinha, que idade tinha... Esses períodos poderiam durar um dia inteiro, horas a fio ou apenas alguns instantes. Tinha dias que apenas vegetava, como se seu cérebro em curto-circuito estivesse, e de nada lembrasse. Permanecia em um estado catatônico. Mas hoje era um dia especial, em que sua memória parecia funcionar às mil maravilhas. Ao menos assim pensava.

Tinha agora nas mãos uma foto sua com seus filhos, em uma das raras ocasiões em que isso acontecia. Era o aniversário do seu filho Alberto. Ou seria do aniversário de sua filha Luisa. Não fazia diferença. Bastava que estivessem os três ali juntos. Os filhos, adolescentes, sentados em seu colo, um em cada perna, sorriso franco nos rostos. Quem batera a foto fora a sua esposa. Flora morreria menos de um ano depois fulminada por um câncer no sangue. Um "linfoma dos brabos", como informara o médico da família na época. Os filhos, agora adultos feitos, já lhe haviam dado netos. Um casal cada um. Não tinha um bom relacionamento com eles. Alias, relacionamento nenhum. Pouco se viam, e quando acontecia de se encontrarem, acabavam por discutir e brigar, indo cada um para o seu lado.

Em outra foto via a esposa. De olhar melancólico, olhando para o infinito. Um olhar triste. Não tivera um casamento fácil. Sabia das infidelidades do marido. Mas como fora criada às antigas, a tudo suportava. Mesmo no fim da vida, nos seus últimos meses sabia da existência de uma amante a quem o marido sustentava. E com assombrosa dignidade a situação enfrentara. Os seus filhos nunca o perdoaram por isso. "Mamãe morreu de desgosto" disse uma vez Alberto. Ou teria sido Luisa? Não lembrava direito.

Tinha noção das coisas que fizera de errado na vida. Seus casos extraconjugais e seu pouco tempo para com os filhos eram algumas delas. Tinha dificuldade de lembrar da infância dos filhos. Deveria ter sido um pai muito ausente. Pagava isso agora em vida, com o desprezo e a pouca atenção dispensada a ele por seus entes queridos. Não achava justo. Apesar dos pesares, achava, que no fundo, tinha sido um bom pai.

Do refeitório escutava vozes e ruídos de pratos e talheres sendo manuseados pelos outros "asilados". Ele preferia fazer as refeições no próprio quarto, descendo raras vezes para comer junto com os outros. Sentia pena de si mesmo e achava que os outros ficavam apontando para ele e dizendo "lá vai o Lourival, aquele que nem os filhos suportam e querem visitar". Podia jurar ter escutado um deles ter feito este comentário. Ou seria imaginação sua, fruto de suas artérias cerebrais entupidas?

Agora tinha nas mãos uma foto sua em que aparecia com muito cabelo. E bigode! Nem lembrava que alguma vez tivera um grande e negro bigode! Até passara a unha em cima da foto pensando tratar-se de uma sujeira sobre o papel fotográfico. É. Realmente a sua memória não andava lá essas coisas. Olhou para o relógio de pulso. Já passavam das dez. O tempo voara ou ele tivera mais um de seus lapsos mentais, uma de suas crises de "ausência", não sabia ao certo. O Alberto e a Luisa devem ter combinado de me buscar para o almoço, pensou ele, por isso não tinham ainda aparecido. Levantou animado da cadeira e foi faceiro para o armário procurar a sua roupa de "sair". Tinha que estar bem apresentável para quando eles chegassem. Não seria também interessante fazer a barba e tomar um banho? Não, ficava muito cansado só em pensar nisso. A água de colônia já bastava.

Quando o enfermeiro voltou ao quarto trazendo o almoço, já estava vestido, pronto para sair, aguardando sentado na pequena poltrona, logo abaixo da janela. O quarto recendia a perfume barato. Uma leve brisa a balançar os agora raros fios de cabelo de sua cabeça um tanto calva. "Não é necessário deixar o almoço hoje porque vou almoçar com meus filhos. Eles vêm me buscar!", afirmou ele com convicção. O enfermeiro, que não era o mesmo da manhã, deu de ombros e deixou mesmo assim a comida sobre a mesa, retirando-se em seguida do quarto, desejando num resmungo, uma boa refeição. Da bandeja de comida saia uma pequena nuvem de vapor e emanava um cheiro de feijão cozido e ensopado de carne com legumes. Continuou indiferente a essas emanações e cheiros agradáveis, mal disfarçando a fome que começava a sentir no momento, olhando de quando em quando para a janela, na expectativa de ver os filhos chegando. Sentiu a barriga roncar, de início esporadicamente e depois com certa freqüência. Quando o enfermeiro retornou, encontrou a bandeja revirada, com alguns grãos perdidos de arroz em meio ao resto de caldo de feijão como testemunha. "Eles devem me visitar no final da tarde" explicou ele ao enfermeiro, "eles são muito ocupados. Os dois trabalham muito".

Os raios do pôr do sol encontraram Lourival ainda na poltrona ressonando. A boca aberta e a dentadura quase a cair para fora. Uma pequena nesga de saliva escorria de um lado, permanecendo pendurada perigosa e periclitantemente no queixo. Ele nem viu quando o enfermeiro entrou novamente, agora com a bandeja das medicações, um copo de suco e um pote com salada de frutas. Acordou assustado quando o enfermeiro o sacudiu. "Eles chegaram?", "Eu sabia que eles vinham me ver". Disse, quase que sem fôlego, engolindo o final das palavras e se cuspindo todo. O enfermeiro limpou o seu rosto delicadamente com um pano úmido e alcançou os comprimidos. Não, eles ainda não haviam chegado. Mas viriam a noite, com toda certeza. Quem sabe até trariam os netos. Claro! Por isso estavam demorando. Eles deviam estar esperando as crianças saírem da escola, para então vir visitá-lo.

A noite chegou e com ela um sentimento de solidão, que o envolveu como um manto fúnebre, gelando seu corpo até os ossos. Sentiu a sua alma vazia e uma melancolia a envolver a sua alma. Sentia um pouco de raiva até, de seus filhos por o deixarem sozinho nesse dia tão importante. Como eram ingratos. Mas quem precisava deles? Seus pensamentos foram interrompidos pela chegada do jantar. Quem traz é o mesmo enfermeiro da manhã, que chega para o plantão da noite. Creme de legumes com bacon e algumas torradas para acompanhar. De sobremesa gelatina, em diversas cores. Come sem muita vontade, engolindo com dificuldade. A comida podia ter um pouco mais de sal, pensa, e além de tudo, estava morna, quase fria. O enfermeiro, antes de sair o ajuda a colocar o pijama puído e a guardar a roupa no armário.

Volta novamente para as fotos e fica a tentar lembrar das imagens ali reproduzidas. Silencio mental absoluto. Não consegue lembrar nada. Larga as fotos e olha para o relógio. Dez horas da noite. Em algum lugar da cidade seus filhos estão. Como puderam esquecer o seu aniversário? Pensa de forma amargurada. Nenhum telefonema. Nada! Apenas um silêncio mortal. Não foi um pai assim tão ruim!

Quando o enfermeiro retorna o encontra em estado torporoso, quase dormindo. Engole os remédios sem saber ao certo o que está fazendo, vira para o lado e volta dormir. O enfermeiro ajeita-o na cama calmamente, cobrindo-o com o lençol. Sobre a escrivaninha espalham-se recortes de revistas e jornais com fotos de gente famosa, que o velho chama de "fotos da família". Recolhe com cuidado e as devolve para a caixa de onde saíram, guardando-a na gaveta. Antes de apagar a luz e sair, anota com diligência o horário da medicação dada e passa os olhos sobre a identificação do paciente e seu diagnóstico: Lourival Barbosa, 82 anos, viúvo, sem filhos. Sem familiares vivos. Em caso de necessidade ligar para o advogado Fulano de Tal. Diagnóstico de Alzeimer e Esclerose Múltipla.

A porta do quarto se fecha, silenciosamente. Por entre a janela parcialmente aberta chega o frescor da noite. Alguma outra alma atormentada canta uma velha canção em um outro quarto. As estrelas brilham no céu sem nuvens. Lá fora, em algum lugar estão Alberto e Luisa, quem sabe planejando uma visita para o dia seguinte. Ao menos assim sonha Lourival, entre um lapso e outro...

Giuliano
Enviado por Giuliano em 29/10/2009
Código do texto: T1893882
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