Numa Tarde
Passeava pelas calçadas com certo charme. Seu corpo parecia se encaixar perfeitamente na paisagem de fundo, seu balançado em nada contrastava com o balanço das folhas ao vento. Meus olhos lhe percorriam dos pés a cabeça, buscavam lhe adivinhar.
Caminhava, parecendo ter consciência de cada movimento do seu corpo, da direção dos seus olhos, do movimento dos seus ombros; como se fosse incapaz de realizar algum movimento leviano ou imprudente. Havia certamente uma mistura de certeza do que fazia, mesclado a um ar de inocência, delineada por traços angelicais e seus longos cabelos: pintados de vermelho.
Eram pintados com certeza!
As sobrancelhas denunciavam aquele falso ruivo com cara de adolescência, inconseqüência, juventude. Um vermelho intenso, como o fogo, como sangue. Era a imagem da perfeição, de perdição... Tudo a sua volta parecia reverenciar sua beleza. Como se a natureza estivesse em comunhão e de acordo em relação à necessidade de fazer revelar a paz que todavia existia, entremeada à fúria apaixonante que era capaz de desperta aos homens, que como eu.
Inocente incoerência, irreverente contradição, e eu não era mais ninguém. Minha vida poderia ser admirá-la, ver o seu pulmão se encher e se esvaziar de ar, acompanhar de perto a leve palpitação que o seu coração impunha ao peito. Acorrentar-me-ia àquele amor, e só; e seria a comunhão com o próprio universo, como o pássaro que ao longe corta a nuvem sobre o céu, o beija-flor que do néctar da flor bebe e consegue o seu equilíbrio no ar.
A sinuosa cintura ostentava uma linda saia vermelha. Fazia-se combinar propositadamente com os cabelos. Só para me provocar; e conseguia... Ah! Se ela o soubesse... O que na minha alma despertava, ah! Essa pequena não caminharia nesse compasso... Não caminharia em minha direção. Mas vinha, e trazia poesia ao meu samba, movimento à minha tela.
A cada passo, meu coração respondia, assemelhando-se um balé, a uma orquestra. Um tango! O caçador estava entregue. Não queria deixar se perceber. Desejava, mas como ser indiferente frente à pulsão natural da vida? O leão estava subjugado, e toda sua impetuosa força, não significava exatamente nada.
Vestia uma camisa verde, dessas de verão, com alças bem finas, ou de primavera, sem qualquer estampa, pretensiosamente como que não quisesse chamar atenção qualquer. Roubava toda minha atenção, minha tensão, meu fôlego. Usava uma bolsa bege de lado e sandálias de couro. Um colar de sementes, uma pena sobre o cabelo. Uma beleza simples e natural, como a beleza de um lago límpido, somada à exuberância de uma frondosa árvore.
Eu me encontrava, me perdia, acompanhado pelo meu fiel companheiro, o violão. Sob uma gostosa e aconchegante sombra em algum lugar do centro da cidade. Meu cabelo, alvoroçado pelo vento, alvoroçado como sempre, dançava sobre a minha cabeça. Fiquei ali a observar aquela garota, que desfilava, e parecia ser para mim. Que no seu ritmo, imersa em seu universo, sem saber, brincava de manipular minha respiração, e todo o resto do meu corpo. Inebriava-me naquele instante, e provavelmente partiria sem deixar nenhuma intenção de retornar a vê-la. Como uma visão, cuja realidade, talvez, um dia eu mesmo fosse questionar.
E ela vinha, na sua cadência, no seu ritmo, na graça de um bom samba, no aconchego gostoso do balanço de um forró dançado devagar, corpos colados, perdidos na melodia. Era a melodia que se impunha como movimento. Vinha, e caminhava em minha direção, tentava desviar o meu olhar, mas hipnotizado, não conseguia, vinha e abria um gostoso sorriso!
Eis que ela parou na minha frente.
O vento que, cheio de maldade, lhe balançava os cabelos, cachos avermelhados que se misturavam com o laranja do sol, fazia sua pele arrepiar-se. Fascinava meus olhos, misturava seu perfume pelo ar. Eu estava em êxtase, podia sentir aquele momento como um sonho, bem real. Parecia que o universo todo havia conspirado pra eu estar ali, e ela também. Sentia-me incrivelmente confiante, sentia-me em conexão com o cosmo, em comunhão com o infinito. Tratava-se de um daqueles momentos maiores do que nós mesmos, inatingíveis à nossa compreensão, que nos fazem conhecer uma parte de nós até então desconhecida. Internamente eu estava emocionado, mas a meus movimentos, haviam sido emprestado a certeza que eu tinha observado nos seus.
Estranhando aquela sensação, me esforcei pra escapar daquilo que não conhecia, hesitei. Num instante, me vi agora separado do que antes era uma comunhão. Eu via um todo de beleza na minha frente, buscava me concentrar, buscava seus olhos, havia perdido, me perdido. Senti que naquele instante ela também se constrangeu, tentei desviar os olhos, mas cada silhueta ali na minha frente brigava por um pouquinho de atenção. Parecia injustiça não retribuir o clamor de cada pequena parte daquele corpo, em toda a sua magnitude.
De repente me senti completamente embasbacado, simulei um olhar desinteressado, como se não fosse nada de mais. Para não ficar claro, assim de cara, minha ardente paixão. Sentia-me envergonhado, meio idiota. Pois que tipo de pessoa se apaixonaria assim? Eu era o tipo de pessoa. Fiquei visivelmente nervoso. Tentei lançar um olhar fixo e brincalhão, estava com cara de idiota. Imediatamente, corrigindo-me, tentei mantê-los meio frio, ficou pior, na certa.
Duas estrelas respondiam de volta, como se já soubessem do que eram capazes. Minha alma parecia um pequeno brinquedo em suas mãos. Não conseguia afastar a idéia de tê-las correndo sobre meu corpo, meus ombros, peitos, costas...
Podia arriscar ao menos um “oi!”. Mas era melhor permanecer calado que deixar escapar qualquer palavra nervosa, fazendo perder qualquer encanto, que ainda houvesse, naquele momento. Permaneci estático. Completamente. Sentia-me um menino sem saber o que fazer.
Olhei para o lado a fim de evitar que ela percebesse meu nervosismo. Tinha vindo até mim. E agora permanecia ali, maravilhosamente linda. Era razoável que, minimamente, eu iniciasse o diálogo. Estava a menos de um metro de distância. Toda aquela perfeição. Cheguei a pensar em pegar meu violão e ir embora, fugir dali e negar minha impossibilidade de agir, depois eu criaria um justificativa racional pra tudo que houvera acontecido.
Simplesmente! Não conseguia falar nada, ou, ao menos. Estava incapaz de estruturar qualquer coisa que parecesse minimamente inteligente. Era o fim da picada. Como? Ela esperava que eu dissesse algo, mas o que? Talvez não desejasse nada demais e tivesse sido atraída pra mim por causa do olhar que havia lançado a ela, que de algum modo ela havia percebido, era claro, e não sei como, teria trazido ela pra ali. Tudo o que eu precisava era dizer algo que chamasse sua atenção, que despertasse seu interesse sobre mim. Poderia começar a realizar uma reflexão sobre signos, ou começar a cantar algum samba antigo, eu precisava fazer alguma coisa. Quanto mais eu me esforçava pra dizer qualquer coisa, mais os pensamentos se afugentavam.
Do nada...
Lascou-me um beijo ardente e molhado.
Sem piedade, ali, no meio da rua. Eu não tive reação senão me permiti sentir toda a euforia espalhada no ar. Assim foi. O maior beijo de toda a minha vida. Não sei quanto tempo durou, mas, não importava. Seu corpo lançou-se sobre o meu, perdi-me entre abraços e beijos ardentes. Ah! Não conseguia acreditar. Não sabia o que pensar, aproveitei o beijo.
Dez anos depois, fui descobrir o que tinha acontecido. Não que não tivesse me interessado antes, sempre me perguntei o que tinha acontecido naquele dia. Pensava se tinha sido alguma aposta de alguma jovem animada por idéias irreverentes, ou teria sido uma curiosidade da alguma garota que não tivesse temores em viver suas vontades da forma que lhe conviesse e lhe desse na telha. Pois que quando meu filho de seis anos me perguntou como havia conhecido a mamãe, ela mesmo me revelou o que até então não tinha visto nexo, nem tido realmente coragem mesmo de perguntar.
Que aquela garota dos seus dezenove anos, que até então era a coisa mais linda, mais fascinante, que eu já tinha colocado os olhos, já sabia que todo dia aquele horário, eu estava ali, com meu violão, minhas músicas, meu samba, meu universo particular; que eu construía debaixo daquela árvore. E que em detrimento do charme, da sensualidade que eu pensasse que tinha. Ou do violão, não sei. O que tinha lhe chamado a atenção era a minha constância, de estar ali, sempre. O que ela dizia que, houvesse o que houvesse, quando não sabia pra onde ir ou com quem conversar, ela ia ali pra perto, e sabia, eu sempre estaria lá. Daí que lhe tinha caído a ficha, eu sempre estivera lá, efetivamente, pra ela.