Cães saboyanos
Cuspiu no lajedo ressequido da calçada, laçou o cordel à volta do pião de nicar e prosseguiu:
- Naquela noitada sim, pá! cacetada de meia-noite!
Cá por mim se tinha ali Pivete assorreava-lo ós bordilhões. Caçadores de vinténs!...
Quem assim falava era o Tono Ximenes. Depois dobrava-se, erguia o braço, e ferroava o pião na eira, com habilidade. Praticava a mira nas sardaniscas secas e mutiladas do caminho e tinha jeito. Aquele jeito de quem faz sempre a mesma coisa, que não admite réplicas.
Cansado de repetir a primeira classe fugira à escola e à ti Mélia e andava agora feito saboyano pelas aldeias da ilha, sem eira nem beira. Só que em vez de limpar chaminés apanhava pielas à custa dos amigos e cozia-as nos degraus das igrejas, pela tarde «adente».
São estes caçoilas capazes de chorar ao pé dum monandro ou dum jasmim, rir com os cães, dormir com as pedras, comer com a sorte, ser a poesia em osso, e tudo com ignorância!
Os outros da mesma «ogalha» admiravam-no pela destreza, por ter corrido mundo, enfim, por ser o Tono Ximenes – que a desgraça também cria mitos – e ele, eternamente humilde, sorria dos gavolas, dava nova nicada de chispar lume, e lá ia com a palma da mão encostada ao ouvido, dedos quase sem unhas, a ouvir dormir o pião.