O CURANDEIRO QUE FAREJAVA
No inverno de 1983, ano em que eu completaria dezoito anos, então presumia que no ano seguinte serviria no Exército, sendo que, por estar prestes a servir, não conseguia emprego fixo, sufocado pela pressão para procurar emprego, resolvi retirar-me para a casa de minha mãe, que então morava na localidade de Arroio do Meio, no Município de Santo Antônio da Patrulha, a leste do Estado do Rio Grande do Sul. Talvez meu padrasto, que era construtor, me arranjasse trabalho em uma de suas obras.
A localidade rural onde eles moravam na ocasião dista uns vinte quilômetros do Município de Taquara, indo-se uns dez quilômetros em direção a Porto Alegre pela rodovia estadual RS 020 e rodando mais uns cinco ou seis por uma estrada vicinal a esquerda, deixando-a depois a direita para seguir mais uns cinco quilômetros por uma estrada rural inferior.
Embora a boa casa onde moravam, minha mãe, meu padrasto, os quatro filhos dele e o meu irmão Davi, que tinha em torno de dezesseis anos, apesar do local tão aprazível, rodeado de árvores, situado num campo ao lado de um arroio que até peixe dava, – apesar disso tudo, esse era um dos piores momentos dos trinta e oito anos do meu padrasto, pois se obrigara a levar a família para morar nessa casa alugada, que custava muito baratinho por ser tão distante, numa localidade onde o ônibus passava para a cidade somente uma vez por dia.
Tal momento ruim tivera início quando meu padrasto sofreu um mal súbito no serviço – certa tontura e escurecimentos das vistas que quase o derrubou de sobre um andaime. Desde então, apesar de que os médicos nada diagnosticavam, persistia as tonturas ocasionais, além de forte dormência no braço e na perna direita, que ele puxava um pouco para caminhar. E, por conta de tratar esse mal, que muito o preocupava, ele gastara tudo quanto tinha, tendo, inclusive, que vender a bela casa que havia pouco tinha construido em um grande terreno no Município de Parobé, os dois bons carros que tinha, além de algumas vacas, porcos e uma pequena fazenda nas pirambeiras basálticas de São Francisco de Paula. Isto tudo sem contar que perdeu uma grande obra por não mais poder conduzi-la.
Por conta disso, agora pagava aluguel e andávamos em uma DKW, a qual ele recebera por um fusca velho, o qual se partiu ao meio quando o novo dono passou sobre uma valeta na estrada. Quanto a DKW, porém, apesar de muito mais pesada que os carros da atualidade de então, muitas vezes eu tinha que empurrar sozinho para dar partida, pagando esse mico inclusive no centro da cidade.
Após pouco mais de um ano do primeiro mal-súbito ele consultara muitos médicos particulares altamente recomendados, além de médiuns, curandeiros, feiticeiros e agoureiros de todas as marcas que a “sabedoria popular” prescrevia. Entre eles, até um que, além de curandeiro, era médico. Tudo a peso de bom dinheiro. Todavia, ninguém desvendava o mistério de sua doença, apesar das suspeitas de todos os prognosticadores de plantão. Eram crenças como mau-olhado, inveja, vudu, feitiços de todos os tipos, encosto do pai falecido e um rosário de superstições.
Todavia, apesar do quadro momentâneo, a situação financeira do meu padrasto estava para melhorar. Construíamos para um dos meus tios em Taquara uma casa de madeira de uma demolição que ele adquirira. Após pronta essa casa e a após ela ter caído e a termos construído novamente, fomos morar nela sem ter que pagar mais aluguel, pois ficaria pelo trabalho de construí-la.
Pouco antes de irmos morar nessa nova casa, certa tarde fui com meu padrasto a um barraco na beira de um barranco no bairro Empresa, em Taquara. Estando nesse barraco, incomodado por querer saber porque ali tínhamos ido, descobri que o homem com cara de Zé Bonitinho e cabelos grisalhos se tratava de mais um curandeiro, sendo esse, segundo meu padrasto falou depois, mais poderoso que os outros, apesar do testemunho de sua casa. Entretanto, ali estavam duas jovens, uma que depois veio a ser minha namorada, a mesma que, segundo disse o homem, e ela mesma confirmou, tinha o rosto tomado de uma crosta escura e dura, que ele curara com sua magia. Depois ficamos sabendo também que ela morava com os pais próximo a casa que construíamos para o meu tio.
Noutro dia deixamos no meio da tarde a construção da casa do meu tio e rumamos no novo carro do meu padrasto, um Chevette que ele pegara finalmente como saldo da venda das terras em São Francisco, para a casa em que morávamos na localidade de Arroio do Meio levando junto, além do curandeiro, a irmã do meu padrasto, a qual era umbandista e mãe de santo ou médium, que é a mesma coisa. O curandeiro de apelido igual a Tênis de Mesa dizia que havia um boneco preto de borracha enrolado em panos ensanguentados enterrado nos arredores da casa. Portanto, ele ia farejar o chão e quando encontrasse deveriam desenterrar para desfazer o vudu.
Diante do exposto, meu padrasto me alcançou a pá de corte que ele me mandara pôr no carro. Recusei-me, porém, a participar, dizendo que não tinha o menor interesse em fazer parte de coisas do gênero, sendo que ele sabia de nossa origem adventista e que para mim aquelas práticas não passavam de zombaria perigosa e desrespeito para com Deus. Sendo assim, o tal de Tênis de Mesa farejou o chão, mandando depois o meu padrasto cavar para desenterrar o boneco que ele percebera ali. Enquanto ele cavava a expectativa era grande para ver o boneco que apareceria. Entretanto, assistindo a cena tão bizarra, eu me esforçava para não censurar, pois via que serviam de fantoches e bobos da corte para os espíritos das trevas, que, decerto, se torciam a rir dos dois.
Após umas duas horas eles tinham dado a volta na casa, o curandeiro de quatro farejando o chão qual um cachorro e o meu padrasto cavando um buraco após o outro. Todavia, nem sinal do boneco ensangüentado, pelo que o curandeiro concluiu que o vudu tinha sido enterrado em um terreno em Novo Hamburgo, Município distante uns cinqüenta quilômetros dali, onde o meu padrasto e sua família tinham morado quando ele era criança. E a busca pelo vudu nesse novo sítio custaria mais um dinheirinho, que o meu padrasto, por certo pagaria se tivesse. Todavia, acho que ele não teve, pelo que não fez a tal busca, sendo que eu mesmo não participei desse novo episódio.
No ano seguinte fui para o quartel e meu padrasto negociou uma pequena casa de madeira no bairro empresa, em Taquara, pela qual ele deu de entrada um Dodginho Polara que ele tinha trocado por um fuça 72 com o motor “na gola”, que ele tinha pego como pagamento pelo Chevette e um dinheiro da mão de um picareta de carros em Novo Hamburgo. Na casa ele abriu um “bar de janela”, que em pouco tempo transformou-se em um armazém surtido num grande avanço que ele fez de alvenaria na casa.
Os anos se passaram e a doença acabou no esquecimento. Todavia, evoluímos, conhecendo hoje muito mais sobre o corpo animal, sabendo então que o mal incurável do meu padrasto, decorrente do vudu que o curandeiro farejou, mas não achou, nada mais era do que veias entupidas, arriscando um AVC ou um infarto, o que se pode prevenir reduzindo o colesterol, comendo menos gordura animal e frituras, bem como tomando limão com água, que afina o sangue rapidinho.