Liberdade é a solidão sem melancolia. Assim eu vinha meditando na contagem dos meus passos sobre o quanto a minha jornada teria sido diferente com um casamento, filhos e toda essa bagagem que o solteirismo nos dispensa. Passar pelos quarenta anos, ainda solteiro, faz o celibato virar religião, um sacerdócio. Confunde-se o solteirão, após essa curva cronológica, com um libertino sem cura.

É preciso resistir à doutrinação para chegarmos à maturidade compreendendo que o romance não existe e que o Amor se resume a uma sofisticada conspiração psicológica motivada pela nossa face mais primitiva: o instinto de perpetuação da nossa insólita espécie.

O Amor é uma arapuca dos sentidos.

Fui forçado a emergir das minhas filosofices por conta de um respingo gelado que começou a atingir o meu rosto. Saí de Porto Alegre com Sol e calor, chegava a Lajeado debaixo de uma chuva tão fria quanto à lâmina afiada de uma faca. As quatro estações num único dia, clima traiçoeiro, o Sul era o imprevisível.

Hospedei-me no antigo Hotel Mariani, não era a primeira vez que eu visitava uma ala da minha família que habita esse recanto remoto do país. Novamente, eu iria poder apreciar as gauchinhas e ouvir a música do sotaque sulista. Eu passaria duas noites em Lajeado, uma cidadezinha fundada por imigrantes alemães e que guarda na sua geografia os mais belos personagens femininos que eu pude ver por todas as minhas andanças.

O recepcionista do hotel me dera uma dica, o Bar do Meneguini era o ponto mais agitado nas noites de quinta-feira.

Talvez esta seja uma das sensações mais revigorantes para o corpo e a mente, caminhar num ambiente desconhecido, onde ninguém sabe quem você é e você também nada sabe de ninguém. As ruas eram bem iluminadas e um vento frio interminável fazia arder o rosto enquanto eu ia seguindo o esboço de mapa desenhado pelo porteiro do Mariani. Era a marcha do pinguim buscando acasalar no município da geada.
 
Faltava pouco para encontrar o bar.

O Meneguini era um pequeno Pub localizado no subsolo de uma enorme casa em estilo colonial, tinha seu charme. Simples, um pequeno balcão onde serviam as bebidas, mesas dispostas bem juntas e um palco minúsculo na extremidade do salão.

Entrei e fui cortando as mesas em direção ao balcão do bar, o burburinho era frenético. Numa curta distância percorrida, eu havia visto uma quantidade considerável de mulheres atraentes. Um harém incrustado na geleira.

Pedi uma catuaba com cachaça e mel. Ah!... O doce álcool! Esquenta nossa carne e transforma nossa alma. Sempre desconfiei que a fórmula do Dr. Jekyll não passava de um bom traçado que conseguia trazer vida ao Mr. Hyde.

Circulando entre os gaudérios, meus olhos esbarram, perto do palco, com a encarnação de Ana Terra, uma moça que parecia ter saído das páginas de O Tempo e o Vento. Morena índia, alta, curvas esculpidas na perfeição, cabelos negros e lisos que escorriam para tocar a sua cintura delicadamente fina, os olhos levemente puxados e de um castanho claro cristalino. O seu corpo coberto por um vestido branco e colado que mais o revelava do que o escondia. O desejo me assumiu.

Afoguei a timidez na terceira catuaba e comecei a calcular a rota de ataque. Pensar, pensar, pensar... Chega de pensar, preciso agir! Farejar, espreitar e atacar! Não a deixava sair da mira, decidi me precipitar em sua direção.
 
Caso eu fosse filmado numa dessas abordagens ao estilo Animal Planet, a imagem seria semelhante a uma hiena afobada que se lança contra a gazela que espera o inevitável abate. Frequentemente, me aproximo rindo e sem saber ao certo o que irei dizer.

- Oi! É que eu sou do Rio, primeira vez que venho aqui, estou meio perdido. Vai ter algum show hoje? – A sorte estava lançada...

- Vai sim! Um grupo aqui da cidade, cantam Beatles. É tri legal!

- Adoro Beatles, que sorte! Só não quero passar por Lajeado sem saber seu nome. O meu é Dante.

- Claro! – Disse rindo. – O meu é Risonete, prazer.

A garota era linda, mas o seu nome era Risonete... Como um detalhe tão ínfimo pode comprometer toda a harmonia de uma obra. Travei por alguns segundos tentando assimilar aquele inesperado substantivo próprio.

- Bonito seu nome, diferente. – A educação é a mãe da hipocrisia.

- Obrigada.

- Vou pegar uma bebida no bar, faço questão de trazer algo para você. Bebe o que?

- Que isso, não precisas te incomodar.

- Faço questão, me diz o que você bebe.

- Bem, se tu fazes questão... Uma Ice.

- Volto logo.

Retornei e engatamos um diálogo fluente. A Risonete morava sozinha numa região vizinha a Lajeado, uma localidade chamada Mussum (comecei a me preocupar com os nomes daquele Vale gaúcho). Era solteira, sem filhos e tinha vinte sete anos.

Linda, mas o nome...
 
Depois da segunda Ice, estalamos um beijo faminto. Comecei a insinuar se ela não queria me apresentar a sua casa, que dormir sozinho num hotel seria péssimo para mim depois de tê-la conhecido. Foi quando veio a segunda parte da história...

Ela trabalhava numa Seguradora em Lajeado e havia se tornado amante do dono do negócio, um ancião que beirava os setenta anos. Ele a sustentava, mantendo, inclusive, o seu apartamento. Como a cidade em que ela morava era muito pequena, não se sentia à vontade para me levar onde residia, o coroa poderia ficar sabendo. Coisas do interior...

Muita conversa e deixamos um encontro marcado para o dia seguinte, na hora do almoço, ela me pegaria em frente ao único Shopping de Lajeado, o Unishopping, iríamos para um Motel, seria mais discreto. Voltei pro Mariani e dormi com tanta roupa que me senti fantasiado de astronauta, um frio de trincar os dentes.

Sexta-feira, uma hora em ponto e eu estava em frente à entrada principal do Unishopping. Céu azul, dia bonito. Um Corsa para a minha frente, era ela. Belíssima, mas eu já não conseguia pronunciar seu nome sem que uma ânsia de gargalhadas me possuísse. Entro no carro e seguimos para um motel que ela conhecia na estrada.

Quando dobramos no meio da BR para acessar a discreta portaria do Motel, vejo o nome do estabelecimento, o inacreditável se materializou: Motel Sigilus.

Ali, o universo se transmutou numa grande piada. Cheguei a imaginar que todo aquele território poderia estar servindo de estúdio ao ar livre para pegadinhas.

Passei, sigilosamente, algumas horas no Sigilus, sorvendo uma das mais belas mulheres que me caíram nos braços. Para manter o desejo, eu só tinha que me concentrar em jamais lembrar a tríade Risonete, Mussum e Sigilus. Um único gargalhar poderia decretar o fim, mas tudo correu bem.

Ao voltar, ela me deixou no meu hotel. No quarto, peguei o celular e liguei para o Teixeirinha, precisava desabafar toda aquela trama com o meu melhor amigo.

- Cara, tu tá de brincadeira comigo! Quer dizer que tu pega uma mulher com nome de salgadinho, amante de um velhusco, moradora de um lugar de nome Mussum e vai comê-la num motel chamado Sigilus?! Só pode estar de brincadeira! – Exclamou o incrédulo Teixeirinha.

- Que nome de salgadinho, Teixeirinha? É Risonete o nome da menina! Ri-so-ne-te.

- Então?! Não é igual a nome de salgadinho?! Risonete de carne, Risonete de frango, de camarão... – O Teixeirinha soltou a risada que me obriguei a represar por dois dias.

Voltei para o Rio no sábado. No avião, fui anotando num guardanapo todos os nomes surreais da inusitada comédia para que, em algum momento, eu pudesse contá-la numa roda qualquer.
 
Outra vez, driblei o Amor. Fiquei pensando... Era linda, mas o nome...
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 26/10/2009
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