A IMAGEM DO PAI
1
Recorda-se.
Chegando do roçado, seu pai lavava os pés na água represada entre a junção das pedras. Depois se sentava em outra pedra defronte a casa. Com o fumo cortado à mão, enrolado no papel retirado do bolso da camisa, fazia o cigarro. Tragando, estendia os olhos ao que o rodeava. O céu se escurecia. O vento mais frio. A rolinha arrulhava, no cajueiro atrás da morada.
Sua mãe, morena, com os cabelos negros, assomava à porta. Irônica, fitava a presença solitária, e sem demora retrocedia à cozinha. Logo, ouviam-se os sons denunciantes do jantar sendo preparado.
Seus irmãos, Manuel e Rosa, brincavam aos gritos. Então, sua mãe protestava:
- Pára com tanta zoada, magote de pestes!
Temerosos da mão forte, os dois suspendiam a gritaria. Seu pai, o cigarro nos lábios, erguia-se. Com a mão, quebrava o chapéu na testa, e encaminhando-se a casa, adentrava.
- Manuel, chame o Valdir pra comer.
Ele, Valdir, escutando-a, dirigia-se à salinha. Mas, antes, enxergava o céu mais negro, o vento agitando o cajueiro, onde a ave continuava cantando.
Ao chegar, ouvia sua mãe inquirindo:
- Vai querer cuscuz, Joaquim?
Respondendo, a voz grossa do seu pai dominava o pequeno ambiente:
- Traga Serafina.
Distante, um carro-de-bois gemia ao peso da carga. Um cão ladrava. A rolinha prosseguia cantando. Ele sentava-se. Sua mãe entrava com a vasilha fumegante. Ele permanecia interessado no mundo de fora, e percebia a noite riscada por vaga-lumes irrequietos.
- Quer também o cuscuz, Valdir? Esse menino vive no mundo da lua.
Assustado, ele retornava ao presente:
- Hein? Quero mãe. Quero.
Cabisbaixo, seu pai comia com apetite. Como se saldasse a noite, a rolinha dizia “fogo-apagou”, “fogo-apagou”.
Então, Rosa:
- Ainda cantando nessa hora? Deve tá fazendo ninho.
Manuel:
- Amanhã, eu vou procurar o ninho.
Sua mãe aí interferia no diálogo:
- Acho melhor vocês comerem, em vez de falarem besteira.
Sem erguer a cabeça, o pai apoiava-a:
- Você tá certa, Serafina.
Sem protestarem, seus irmos atendiam-na.
2
- Por que você não tenta um serviço na nova construtora?
Indagou sua mãe ao seu pai, que após acender o cigarro, respondeu:
- Também já pensei nisso. Depois de soltar as criações no cercado, vou dar um pulinho até lá.
- Pois é não custa nada tentar. Nessa seca, qualquer “gancho”, serve. Vá, homem, com fé em Deus...
Daí, pesadona devido à gravidez, se retirou devagar. Sem tardar, escutavam-se as pancadas do machado contra a madeira, que cortada, lhes serviria de lenha para o fogão.
- Serafina, deixe esse serviço pra nós: você tá muito “cheia”.
Então, aligeirando-se, seu pai encaminhava-se ao terreiro, onde sua mãe encontrava-se.
- Venha aqui me ajudar, Valdir.
O pai lhe chamava. Obedecia.
Depois da madeira em pedaços, ele a punha junto ao fogão.
- Valdir!
Novamente o chamado do pai.
- Tou indo, pai.
Respondia, correndo.
Adiante, em movimentos ágeis, o braço poderoso do pai descia em golpes certeiros sobre a madeira.
Sobre suas cabeças, o sol esquentava no céu muito azul.
3
Com o rosto mais corado, a voz mais alegre, Joaquim:
- Arrumei um serviço lá na construtora.
A mulher:
- Graças a Deus, que tarda, mas não falta.
Aí sensibilizada, evitando chorar, desviou o assunto:
- Vem pra mesa, homem.
Sentando-se, ele indagou:
- Os meninos onde estão?
- Foram mais o Valdir pra feira.
- Eles tão com dinheiro mode gastar?
- Foram dar um “giro”, “desparecer”.
- Mas, com tanto o quê fazer, criatura?
- São ainda pequenos, Joaquim. Carecem de distração.
- Tá bom. Não quero discutir: hoje, tou alegre.
Sem perceber, ela então retornou ao assunto:
- Quando começa no trabalho?
A voz dele cresceu, animada:
- Segunda vindoura.
Então acalentados na esperança de dias melhores, prosseguiram a refeição.
No cajueiro, a rolinha começou a cantar. Entoada. Tristonha. Longe, um carro-de-bois gemia ao peso da carga.
- Ô lugarzinho pra ter carro-de-bois!
Ele comentou.
Concordando, ela sorriu, e tornou-se mais morena bonita.
4
- Até, Serafina.
- Vai com Deus, Joaquim.
Apressando-se, ele enfrentou a estrada, que o conduziria à vila, onde com outros homens, sobre a carroceria dum caminhão, seguiriam para o trabalho.
Pilhéricos, alegres, afastavam-se na condução que se distanciava na rodovia deserta àquela hora da madrugada, para regressarem à noite. Silenciosos. Exaustos.
Depois que se empregara, o seu pai tornara-se mais calado. Então, sua mãe sorrindo, gracejava:
- O homem tá tão “lambado”, que nem coragem de falar tem... Vai se lavar?
- Tou indo.
Alto, meio curvo, dirigia-se às pedras com a água retida. Logo, escutavam-se os sons do caneco nas pedras, ao retirar o líquido, e a voz grossa, protestando:
- A água tá gelo puro!
Vizinha ao fogão, sua mãe sorria, e se voltando para eles, seus filhos:
- Fiquem aqui, não vão pra fora, que o pai tá no banho.
Ativa, preparava o jantar. No rosto mais cheio pela gravidez, nascia o sorriso de satisfação.
Sem tardar, o pai retornava:
- A janta ficou pronta?
- Ficou seu “esfomeado”. Senta aí.
Então, à luz vacilante do candeeiro na parede, a família alimentava-se em silêncio. Após a refeição, o pai retornava à pedra preferida.
- Joaquim tá ali, no cantinho dele.
Falava a mãe, e novamente se dirigia a eles:
- Vão se deitar.
- Mas, mamãe...
- Obedeçam. Agora!
Resmungavam, contudo, atendiam-na. A seguir, enquanto o sono não os vencia, ficavam ouvindo o vento passeando sobre o telhado, o canto de um pássaro noturno. Os latidos dum cachorro, e sabiam que à porta, a mãe fixava o vulto solitário, nas pedras, que, fumando, queimava a noite.
Depois, com os passos retornando, a porta seria fechada, e o pai tossindo, adentrava no quarto. Sendo então, censurado pela mãe:
- Joaquim, você anda fumando em demasia.
O pai não lhe respondia, e continuava tossindo. Contudo, logo ia diminuindo, parando a tosse. O silêncio então acalentava tudo, e todos adormeciam.
De madrugada os passos novamente cruzavam a salinha, o terreiro, e se perdiam na estrada arenosa, que os levava à vila.
Pensativa, sua mãe fechava a porta, e se reentregava à luta do novo dia.
5
Ao dinamitar as pedras, seu pai perdera três dedos da mão esquerda.
Dispensado da companhia, aguardava a aposentadoria por invalidez. Calado, punha-se naquela pedra. Fumando. A atenção fixa no mundo conhecido.
A família respeitava-lhe o desejo em se isolar, e a mulher percebia-lhe o mutismo maior, o rosto mais pálido, e o caminhar mais devagar. Contudo, esperava que, aos poucos, seu companheiro se reentregasse à nova vida. Tanto assim que, numa manhã, criando coragem, falou:
- Joaquim, isso de se ficar pensando, não resolve. O que passou, morreu. Reaja, homem!
Durante segundos ele permaneceu mudo, depois, pondo o chapéu na cabeça – mais grisalha – erguendo-se, afastou-se. E, sem se voltar:
- Mate o “capão” pra o almoço, Serafina.
Então, entenderam que ele aceitava a realidade.
Feliz, a mulher disse baixinho:
- Graças a Deus!
Aí Valdir percebeu-lhe os olhos úmidos.
Com a mão nervosa, ela esfregou um olho. Depois, o outro.
Com o coração apequenando-se, ele apressado fugiu o rosto.
Aos gritos, seus irmãos corriam no terreiro.
Pensativa, sua mãe retrocedeu a casa, enquanto a imagem do pai se resumia na distância, até se diluir.