A alma e o som

Fim de tarde. O pôr do sol coloria o céu azul de um laranja incandescente na pequena cidade de Floresta. No coração de Joana, a cor era outra. Indecifráveis sentimentos angustiavam o jovem peito dividido entre o partir e o ficar. As opções representavam, naquele instante, intensas modificações no ser e existir da moça.

Tomar decisões aos treze anos deveria ser crime, acreditava a pequena órfã de olhos castanhos amendoados e cabelos de cachos cor de mel. O pai da pequena costumava dizer que os cachos eram labirintos por onde desciam os pensamentos até se tornarem realidade. Que estranha imagem, era aquela. Às vezes quando tinha uma boa ideia, ou melhor, quando descobria uma nova maneira de enganar seus pais pra sair e “pegar emprestado” as mangas da chácara vizinha, Joana corria para amarrar os cabelos. Não queria perdê-las.

Finalmente, a pequena esboçou um sorriso. Talvez tenha sido a lembrança da infância recente, pegando frutas no vizinho, ou o modo como seu pai definia seus cachos...o fato é que agora ela havia se perdido no labirinto do destino. Amarrar os cabelos não alivia mais. Por que mudou? Ah, como ela queria contar as verdades omitidas, rever o dedo da mãe apontado pra cima...reclamando a traquinagem bem sucedida, dizendo o que fazer, para onde ir, como se comportar...

Os pensamentos de Joana a distraíam, mas não afastavam-na da realidade. Depois de cinco longos e, às vezes deliciosos, às vezes solitários, anos no orfanato, finalmente, a adoção. Imaginem, o desejo de cinco entre quatro crianças, - isso mesmo, cinco em quatro, até aquelas que não estão lá ainda, desejam sair sem nunca terem entrado.

Ficar até completar dezoito anos e viver por si mesma, ou partir e permitir que outros o façam, ou orientem seu destino, como seus pais faziam e fariam, se vivos. Refletindo, a garota labirinto recordou o conselho de uma velha amiga, a senhora Alda. Negra, neta de escravos e sem filhos. Como voluntária, lavava as roupas dos pequenos órfãos em dias de domingo. Conversar com Alda era ouvir histórias encantadoras, contos, poesias. Ela costumava dizer que eram sons da alma, somente. Nesse instante, caiu por terra a imagem do labirinto, dos cabelos e das idéias que escorregavam até ruir no chão ou no nada. “Então minhas idéias, meus pensamentos, não vêm da cabeça e escorregam pelos cabelos? Vêm da tal alma? Perguntava Joana aos sete anos, provocando gostosas gargalhadas na velha senhora.

Com Alda, a menina descobriu que tinha alma, mas não conseguia ouvi-la, apesar dos esforços. Paciência, dizia a velha amiga, ela vai se manifestar quando você precisar.

Era o momento, então. Joana esperava com ansiedade o som de sua alma. Há alguns anos, desde a morte feliz da amiga Alda - sim, ela morreu feliz, acreditem, aos 90 anos, quite com a vida, com Deus e com a humanidade -, a menina não pensava tão obcecadamente em ouvir a própria alma.

E ouviu. Não foram respostas, como imaginara. Foram reflexões. Quais seus sonhos, o que buscas, o que te faz feliz? Pensou em cada detalhe de sua infância, nas manguerias, nas broncas, no amor de seus pais, nas perdas, no orfanato, em Alda...e na família que estava prestes a conhecer. O pôr do sol mantinha os olhos da pequena grudados no céu. Ai, como ela queria que fosse o amanhecer, trazendo luz, conforto, esperança, tudo parece dar certo quando pensado no início do dia...mas era a tarde, o fim, o surgir da escuridão! A angústia de Joana a impedia de ver beleza e o acalanto no fim daquela tarde de primavera.

O encontro estava marcado. Chegou a hora. Sentada no balanço improvisado no terraço do orfanato, Joana aguardava o senhor e senhora Matias. Não quis saber como eram, o que faziam, nem se tinham filhos. Sua curiosidade se resumia a uma única pergunta: por que cargas d’água um casal adotaria alguém com tanta idade? “É a primeira pergunta que vou fazer a eles”, pensou alto Joana, armada com o orgulho e medo.

Ana e Paulo Matias traziam sorrisos abertos e olhos humildes, que de imediato conquistaram a confiança da mocinha órfã. “Eles têm algo familiar”, sussurrou a alma de Joana. Após alguns minutos de silêncio a conversa entre os três fluiu. O medo cedeu lugar à compreensão e a alma de Joana emitia o som de satisfação. Como há muito não sentia. O peito apertou e a menina não conseguiu conter as lágrimas quando o senhor Paulo, com uma voz mansa, porém, altiva, mencionou a palavra filha...”filha”. A expressão surgiu em meio às risadas que provocadas pelo relato das histórias de infância, das aventuras no quintal dos vizinhos e dos pensamentos perdidos no labirinto dos cabelos longos que se foram junto com seus pais.

Meses se passaram até a partida de Joana para o novo lar. Cada anoitecer agora trazia a certeza de um amanhecer com grandes expectativas. Paulo e Ana adotaram ainda duas crianças pequeninas. Joana tornou-se uma mulher segura. A solidão e a insegurança desapareceram desde que ela começou a ouvir o som de sua alma e se permitiu ser feliz!