Sob os Pés da Mulher
As mulheres insistem no salto alto, querendo tornar mais elegante o conjunto que a natureza já fez perfeito. Cuidem, visto não abrirem mão do artefato, da coluna escolhendo modelos que, a par do castigo, se lhes atribuam o charme que encanta, fascina e deslumbra o olhar. Nisso estão certas. Uma mulher em salto, sabendo caminhar, compondo com o resto de suas linhas uma forma de deslumbre, não se furta a deixar por onde passa uma atmosfera de encanto.
Verônica sabia disso e decidiu ir ao trabalho naquele salto ponta de agulha, nas finas meias pretas, completadas pelo seu preferido e discreto ¨tailleur¨. Quase chegando ao prédio alto, eis que no meio do caminho havia uma fenda, inútil, por que desnecessária, a interromper-lhe o andar. O agulha cravou em cheio e ali ficou. Atenta, sentiu o baque daquele furo que se abrira sob seus pés e não se moveu. Temeu pela quebra do salto, pelo giro que poderia ruir seu tornozelo. Não havia parede próxima. A pasta de couro em uma das mãos era um desafio ao equilíbrio.
Naquele momento pensou em não se afligir demais, para não suar, e assim não vir a desmanchar o preciosismo da calculada maquiagem. Portava os papéis que seriam utilizados na reunião da diretoria.
- Não posso me atrasar. – Pensava, enquanto mil outros pensamentos a afligiam, a turba desfilava-se apressada. Veio-lhe a sofreguidão do asco que um encontrão infeliz poderia determinar. Nem o apoio de um poste, nem de coluna ou parede. Discretamente, como quem procura um amigo entre estranhos, acenou para um senhor de terno que lhe pareceu decente.
- Moço! – Ele, obviamente, não deixaria de atender àquela ruiva em dificuldade. Atentou então para o fato e aproximou-se solícito. Como se o mundo inteiro despertasse naquele instante, a multidão abriu um rasgo e passou a caminhar em ritmo mais lento, tendo outros homens, em seus ternos, com suas maletas, e sua pressa habitual da paulista pré-pregão, atentado para aquela fêmea de ¨homos-modernus¨ em franca dificuldade, podendo perder, a qualquer momento, a postura, graças a um ardil maquiavélico do destino.
O senhor ajoelhou-se aos seus pés, no que lhe sentiu o perfume, naquela fragrância primaveril arrebatadora, e somente queria ser novamente solteiro, e jovem, e forte, e livre, para convidá-la a um jantar, mas a ocasião era de necessidade e precisão, e a ética o proibia da aventura. Com muito cuidado, na ponta dos dedos, como quem retira um cisco do olho de quem ama, tentou mover a ponta de madeira da inconveniente abertura. Um outro jovem apareceu, dando-lhe o apoio às mãos, para que não se desequilibrasse.
Veio então mais um, no ardil de humanidade, a oferecer-se para segurar a sua pasta. Tantos outros pararam e a cercaram, que se sentiu uma rainha, em pleno júbilo de inesperada coroação. O senhor, aos seus pés, ganhava milhões por ano, mas, naquele momento, o que lhe seria sagrado era o auxílio à jovem. A fenda vencia a luta e algo de mágico detinha-lhe. Não havia força sobre esse mundo que poderia retirar os pés de Verônica do cravar que se dera. A inveja do planeta, também fêmea, pela altivez da mulher se manifestara naquela repentina forma de ira.
- Tente puxar, com cuidado! – Dizia o senhor. Outro se abaixou, para prestar apoio, no que sentiu o perfume, e também virou súdito, faltando apenas o juramento de vida e morte. Já um grupo grande assistia, criando, na agitada calçada, um tumulto, atraindo até a atenção do guarda.
- Que vem ser? – Pergunto, e, ao notar, também se abaixou, oferecendo um pequeno canivete como precisa alavanca que viria a mover o mundo. Na delicada operação, diante da inusitada muralha, muitos pescoços se amontoavam. Verônica se sentiu sagrada. De repente a terra se abriu e o salto se viu livre e foram muitas gentilezas e trocas de obrigado. A moça subiu apressada. Quando chegou ao andar, diante dos colegas, foi recebida com um clamor de palmas. As câmeras de segurança a flagraram naquela agônica desventura e sua saga foi retransmitida a todas as telas e terminais. Verônica teve o seu dia de deusa, de celebridade e de rainha, posto que inconvenientes surgem para definitivamente provar qual é o gênero que derrama o mundo aos seus pés...
As mulheres insistem no salto alto, querendo tornar mais elegante o conjunto que a natureza já fez perfeito. Cuidem, visto não abrirem mão do artefato, da coluna escolhendo modelos que, a par do castigo, se lhes atribuam o charme que encanta, fascina e deslumbra o olhar. Nisso estão certas. Uma mulher em salto, sabendo caminhar, compondo com o resto de suas linhas uma forma de deslumbre, não se furta a deixar por onde passa uma atmosfera de encanto.
Verônica sabia disso e decidiu ir ao trabalho naquele salto ponta de agulha, nas finas meias pretas, completadas pelo seu preferido e discreto ¨tailleur¨. Quase chegando ao prédio alto, eis que no meio do caminho havia uma fenda, inútil, por que desnecessária, a interromper-lhe o andar. O agulha cravou em cheio e ali ficou. Atenta, sentiu o baque daquele furo que se abrira sob seus pés e não se moveu. Temeu pela quebra do salto, pelo giro que poderia ruir seu tornozelo. Não havia parede próxima. A pasta de couro em uma das mãos era um desafio ao equilíbrio.
Naquele momento pensou em não se afligir demais, para não suar, e assim não vir a desmanchar o preciosismo da calculada maquiagem. Portava os papéis que seriam utilizados na reunião da diretoria.
- Não posso me atrasar. – Pensava, enquanto mil outros pensamentos a afligiam, a turba desfilava-se apressada. Veio-lhe a sofreguidão do asco que um encontrão infeliz poderia determinar. Nem o apoio de um poste, nem de coluna ou parede. Discretamente, como quem procura um amigo entre estranhos, acenou para um senhor de terno que lhe pareceu decente.
- Moço! – Ele, obviamente, não deixaria de atender àquela ruiva em dificuldade. Atentou então para o fato e aproximou-se solícito. Como se o mundo inteiro despertasse naquele instante, a multidão abriu um rasgo e passou a caminhar em ritmo mais lento, tendo outros homens, em seus ternos, com suas maletas, e sua pressa habitual da paulista pré-pregão, atentado para aquela fêmea de ¨homos-modernus¨ em franca dificuldade, podendo perder, a qualquer momento, a postura, graças a um ardil maquiavélico do destino.
O senhor ajoelhou-se aos seus pés, no que lhe sentiu o perfume, naquela fragrância primaveril arrebatadora, e somente queria ser novamente solteiro, e jovem, e forte, e livre, para convidá-la a um jantar, mas a ocasião era de necessidade e precisão, e a ética o proibia da aventura. Com muito cuidado, na ponta dos dedos, como quem retira um cisco do olho de quem ama, tentou mover a ponta de madeira da inconveniente abertura. Um outro jovem apareceu, dando-lhe o apoio às mãos, para que não se desequilibrasse.
Veio então mais um, no ardil de humanidade, a oferecer-se para segurar a sua pasta. Tantos outros pararam e a cercaram, que se sentiu uma rainha, em pleno júbilo de inesperada coroação. O senhor, aos seus pés, ganhava milhões por ano, mas, naquele momento, o que lhe seria sagrado era o auxílio à jovem. A fenda vencia a luta e algo de mágico detinha-lhe. Não havia força sobre esse mundo que poderia retirar os pés de Verônica do cravar que se dera. A inveja do planeta, também fêmea, pela altivez da mulher se manifestara naquela repentina forma de ira.
- Tente puxar, com cuidado! – Dizia o senhor. Outro se abaixou, para prestar apoio, no que sentiu o perfume, e também virou súdito, faltando apenas o juramento de vida e morte. Já um grupo grande assistia, criando, na agitada calçada, um tumulto, atraindo até a atenção do guarda.
- Que vem ser? – Pergunto, e, ao notar, também se abaixou, oferecendo um pequeno canivete como precisa alavanca que viria a mover o mundo. Na delicada operação, diante da inusitada muralha, muitos pescoços se amontoavam. Verônica se sentiu sagrada. De repente a terra se abriu e o salto se viu livre e foram muitas gentilezas e trocas de obrigado. A moça subiu apressada. Quando chegou ao andar, diante dos colegas, foi recebida com um clamor de palmas. As câmeras de segurança a flagraram naquela agônica desventura e sua saga foi retransmitida a todas as telas e terminais. Verônica teve o seu dia de deusa, de celebridade e de rainha, posto que inconvenientes surgem para definitivamente provar qual é o gênero que derrama o mundo aos seus pés...