O Jogo de Cartas
- Se você não sabe, querida amiga, essas mulheres, ditas de virtude, existem em todas as comunidades do País. As de Lisboa trajam roupa de marca, frequentam o instituto de beleza e atendem ao domicílio se o cliente tem meios para pagar, muito caro, o torcer dos destinos. As da província não se distinguem das demais e vestem-se como as vizinhas. Preto ou escuro, avental e lenço. Muitas têm buço áspero e as pernas robustas semeadas de pêlos negros, coisa que as torna apelativas para os padrões locais. Como denominador comum têm o gosto por tudo o que sirva para ler o futuro, mudar o presente e adivinhar, como penhor da sua verdade, o passado que lêem nas caras aflitas de quem as procura. Deitam cartas, falam com os mortos, conhecem os signos, usam as 78 lâminas do tarot para, como apregoam, saber a verdade que lhes passa a ser acessível a respeito de Deus, do Universo e do Homem… tudo com o objectivo primordial de enganar os simples, os tolos, os crédulos. Percebe, Maria José?
- Pois sim, D. Palmira, mas esta é diferente. Disse-me que o meu mal era de amor, disse que me invejavam o homem e até acertou quando referiu que ele estava em França. Depois da reza que fez para me limpar as energias negativas nem quis cobrar nada pela sessão. Só me disse que tenho de lá voltar com fé e com alguma oferta para os do Além. Para ela não pede nada, sabe? E aqui é que bate o ponto. É a sua opinião sobre isto que preciso. A senhora tem sido sempre tão compreensiva… O que deverei levar? Ouro? Dinheiro? Quanto? Uma amiga que tenho no Rio de Janeiro jogou ao mar, para Iemanjá, um anel de brilhantes. Recuperou o marido. … Estas coisas não se explicam, D. Palmira, e muitas funcionam, não duvide.
- Duvido sim, Maria José, mas também percebo quando é inútil impor os meus pontos de vista. Há-de ser como você quer porque terá de aprender á sua custa. Dinheiro não tenho para lhe emprestar e, trabalhando cá em casa há tantos anos, sabe muito bem que todas as jóias que possuo fora do Banco, têm mais valor afectivo que monetário. Estaria fora de questão ceder alguma delas para esse efeito. Quanto ao adiantamento que me pediu, por uma questão de princípio e por saber já a que se destina, está negado. Sei que, hoje, esta decisão a vai deixar magoada mas tempo virá em que irá agradecer-me por isto.
-Muito bem, minha Senhora, desculpe-me o tempo que lhe tomei. E saiu a Maria José em lágrimas a torcer as mãos no desespero que lhe haveria de durar muito tempo. De regresso ao quarto abriu a antiga lata dos biscoitos e contou as moedas que estava a juntar para comprar um vestido para a festa de Santo António. Ao todo cem euros, talvez muito pouco para obter uma solução rápida.
Adriano prometera-lhe casamento no ano anterior, quando viesse de vez para Portugal. Depois disso estiveram juntos no último Natal e aí é que tudo começou a parecer-lhe diferente. Nem grandes mimos, nem sexo, nem aquele olhar amarrado ao seu como dantes. Fugia-lhe à fala, mentia, dizia que demoraria mais uns dois ou três anos por lá… E Maria José limitou-se a unir as pontas da história, a pesquisar razões, a fazer perguntas a gente conhecida sediada em Paris. Ambíguas, as pessoas olhavam-na com pena, contavam meias verdades, escondiam-lhe os factos na ânsia de a poupar a maiores desgostos. E ela entendeu. Adriano tinha outra mulher em França.
A verdade é que não podia desistir dele. Gostava do seu jeito forte de a amar, da força com que a sujeitava, do modo como conduzia sempre as coisas da sua vida e, até, as da cama. Melhor, muito melhor, que o outro que namorava na terra. Agarrara-a com a história do casamento e agora tinha uma criança para nascer dentro de poucos meses. Não se arrependeu mas queria o seu filho com pai, com aquele pai. Se a D. Palmira não compreendia, não ajudava e se fazia tábua rasa de tantos anos de dedicação à família, alguma outra solução haveria de arranjar para recuperar o amor de sua vida.
Quando desceu a escada do prédio da Rua da Palma onde morava a “vidente” vinha transtornada. A acreditar no que ela dissera o caso era muito bicudo, as teias muito grandes, os espíritos fortes … e iriam exigir muito mais que os cem euros que só serviriam para abrir os primeiros acessos. Que viesse com mais dinheiro ou valores e que viesse depressa para que lhe pudesse valer. Que se lavasse em chá de arruda e se esfregasse com manjericão verde; Que pusesse enxofre nos cantos da casa. Pobre Maria José.
Do alto da sua vivência de mulher a beirar os trinta e sete, as ilusões já não têm o verdor dos vinte anos. Ama-se mas sem perder o tino, acredita-se mas com reservas, confia-se mas nunca na plenitude da entrega. Na verdade estas atitudes sintetizam regras de ouro de um querer maduro e estável. Difícil, na verdade, era abdicar assim do homem de quem gostava e que tão boas razões lhe dava para a luta. A “vidente”, essa garantia o sucesso e se o problema era dinheiro ela consegui-lo-ia. Talvez vendendo a casa e as terras na aldeia… talvez um empréstimo no banco, pensou.
Entrou no café para beber alguma coisa quente enquanto esperava pela sua maior amiga e confidente. Os mais importantes passos da vida dera-os depois de partilhar os problemas com ela e de lhe acatar os conselhos. Agora não seria diferente. Durante o encontro choraram ambas, discutiram o assunto muito tempo e ficou assente que Maria José consultaria outra mulher de virtude antes de voltar à que lhe exigia tanto dinheiro. E lá foram. Baralhadas as cartas, acesas as velas, velada a janela, a mulher debitou rezas antes de concluir que só o tempo diria para que lado o homem se voltaria, para que lugar seria arrastado pelo destino. Que nada fizesse, determinou, para evitar males vindouros como azares e mortes, afastamentos e dores.
Desta vez o medo, a superstição, o receio de atrair para si maiores penas, salvou-a das garras da vidente da Rua da Palma. A vida seguiu o seu curso com as mudanças que lhe ditou o coração. Mudou de cidade, trocou de emprego, evoluiu. Adriano nunca voltou e o menino, nascido num Maio já distante, anda na escola do bairro. Maria José, tida como honesta e fiel, espera casar com Luís, um homem maduro, ainda antes do final do ano.
FIM