A Aldeia de S. Bonifácio
Em S. Bonifácio ninguém gostou quando eles, arrastando as bestas e enfileirando as carroças, delimitaram o terreno baldio contíguo ao adro da igreja. Eram meia dúzia de homens, um ror de crianças ranhosas e duas mulheres jovens. A verdade é que a aldeia morria à míngua de tudo e de solidão. Encastoada nos contrafortes da serra, há anos que estiolava sem que a população se renovasse ou, pelo menos, se mantivessem os que, ali nascidos e criados, ainda poderiam ter pelo lugar algum amor.
Uns quantos velhos casmurros, o ti Zé da adega, já rondando os sessenta, bem como a Otília e a filha, era tudo o que, em termos de gente, poderia ser contabilizado. Nestas contas não entravam o padre nem o Regedor que, finos, também eles se enfastiaram do silêncio e do ar desértico da terra. Enfim, concordaram que talvez fosse uma experiência a fazer mesmo considerando que os ciganos não são como os demais por terem lá as suas crenças e hábitos de quem, sem terra e sem casa, não aceita regras nem opinião cristã.
Nos primeiros dias olharam-se todos com desconfiança e alguns nem à salvação respondiam, tão certos de que não haveria hipóteses de comunicação entre si. Arrumados os parcos haveres no pátio do solar abandonado, ainda pernoitaram ao luar, cantando e bailando, enquanto as mulheres cozinhavam na fogueira que, daí para a frente, nunca mais se extinguiria. A seguir a porta da frente surgiu quebrada, aberta como uma boca de mina, e os barulhos foram-se acentuando pelo casarão, que foi considerado luxuoso, no século passado.
No grupo dos residentes só a Otília lhes não mostrava má cara. Ainda moça, escondia-se nos crepes negros para melhor agarrar o espírito austero das velhas e para esquecer fogosidades que não acabaram com a morte do Toino, seu marido. Invariavelmente era ela quem punha moderação na agressividade e quem intercedia na loja do André quando ele se mostrava renitente à venda dos géneros e do vinho. Foi assim que começou a entabular conversa com o Joel, o mais forte dos ciganos e o único que ainda se mantinha solteiro, como se a chefia do grupo lhe exigisse distanciamento dos que orientava.
Conheceram-se quando um dos gaiatos caiu na ribeira e ela, sem pensar em consequências uma vez que não sabia nadar, se atirou à água e retirou o petiz já roxo e desfalecido. Correu com ele para o acampamento dos ciganos e entregara-lho. Já não teve forças para mais e ali ficara, deitada no chão, ensopada e em desalinho completo, vendo-o suspender a criança pelos pés antes de o reanimar com a respiração boca-a-boca. De nervosa não conseguia articular palavra nem erguer-se. Foi pela mão calosa e morena que ele lhe estendeu que pôde, finalmente, pôr-se de pé. Só os olhos falaram. Depois, envergonhada, regressara à pedra para recolher a roupa e enfrentar os desafios das outras.
Evitavam-se mas foi ela quem decidiu que era melhor o solar ser utilizado que estar, como estava, a ser minado pela ruína dos mofos e dos ratos. De resto, oco como uma casca de árvore velha, o casarão de três andares ficara sem dono à falta de entendimento entre os herdeiros que a morte acabara por levar antes de solucionada a pendenga. Pois que o utilizassem, sentenciou; que fosse a casa que não tinham, o abrigo a que eles e os animais tinham direito. Valeu-lhe a raiva e a determinação pois enfrentar ideias de antanho em corpos feitos, como a serra, de pedra dura, não era tarefa desejável. Venceu. Os ciganos ficaram na casa que se animou com a luz dos candeeiros de petróleo e com o som das castanholas e das palmas. Foi nessa ocasião, dois meses depois de se terem instalado, que chegou a senhora do apoio social para começar a dar início ao programa determinado pelo Governo para os grupos em vias de sedentarização. D. Adelaide de Melo, assim se chamava, era mulher farta de seios, dinâmica e decidida. Comandava o auxiliar como um capitão do exército e, como os chefes tiranos, não admitia réplica nem contestação. Mandou que o povo se reunisse na casa do padre e ordenou, de viva voz, que os ausentes se apresentassem. A seguir disse ao que vinha. Era urgente salvar a aldeia, enchê-la de gente moça, recuperar as casas de alvenaria, restaurar acessos, fazer chegar a água canalizada, ressuscitar os campos, ajudar os que, sem família, bem necessitados estavam de um pouco de conforto. Com velhos não se vai além da vontade e, por isso mesmo, ela pedia, ao menos, distanciamento e tolerância já que os antigos mais não davam que a orientação à luz do que se aprendia quando tudo rodava por si, na vida da terra. Estava disposta a respeitar todos os usos, tradições, crenças e modos de viver. Não acatava ordens que não fossem dadas pelos patrocinadores daquele programa e, a bem ou a mal, queria higiene, organização e respeito entre os que chegavam e os que ali estavam mais como seixos do rio que como gente capaz de se adaptar e evoluir. Calou, com lógica feroz, o ti Zé do moínho, a Alzira das cabras e a Rosa padeira. Que descansassem que ninguém lhes cercearia os direitos e que seriam eles a querer aderir ao projecto quando vissem o seu desenvolvimento. Os ciganos foram escolhidos entre os que se ofereceram para ali ficar. Estavam dispostos a ser agricultores e criadores de gado; a educar os filhos na escola; a ser, como todos por ali, gente de bem. Agradecia, portanto, que os não hostilizassem para não terem problemas mais graves que aqueles que, inevitavelmente, haveriam de surgir. Ela era uma professora como as outras, mas habilitada a chefiar a recuperação da aldeia nos moldes de modernização compatíveis com os valores que queria defender. Aceitava sugestões e propostas; precisava de quem a alojasse provisoriamente e faria a sua intervenção sem data nem horário. Colocando o ajudante a registar o nome, idade, sexo, estado civil e profissão dos voluntários, prometeu novidades para o dia seguinte.
E... pronto, ei-la numa roda viva a ensinar os ciganos a dar banho às crianças, a ajeitar o casarão, a cuidar de fazer uma comida mais saudável. Aos homens marcava tarefas e o pessoal da aldeia, ainda intrigado, habituou-se ao bulício do pátio e às transformações que, entretanto, as coisas iam tomando. Os muros apareciam caiados, as pedras repostas nas divisas dos terrenos, o mato limpo, as canaletas desobstruídas e a Escola a funcionar com os poucos ciganitos que havia. A mulher desdobrava-se como se viver fosse aquela coisa sem tempo para si própria, sedenta de velocidade, sem cansaço, como que movida por um ideal forte e indomável. Assim foram, paulatinamente, aprendendo a conviver uns com os outros vendo medrar as hortas e os caminhos a encherem-se de hortênsias...
Otília, agora íntima de D. Adelaide de Melo, tornara-se no seu mais válido ajudante-de-campo. Aligeirara o luto mandando às malvas a crítica dos velhos e retornara aos seus tempos de mulher livre e avançada. Fora a primeira a inscrever-se em tudo, até na alfabetização. Ao padre adiantara pouco fazer frente às mudanças porque nem ele punha freio na chefia do programa nem podia impedir que o Regedor andasse embeiçado por aquela espécie de tufão. “O melhor seria ajudar”, pensou, dando seguimento a velhíssimas normas de comportamento clerical de que já nem se lembrava. Com isto obtinha os favores gerais e até já lhe apetecia partilhar dos serões à lareira.
Com a luz eléctrica prometida, novas reses a pascer e um clima de perfeita euforia a contagiar as pessoas, logo concluíram, mesmo os mais renitentes, que era urgente trazer outros braços para as muitas tarefas que era imperioso desenvolver.
Quando, atraídos pelas novas de progresso elas chegaram, ninguém pensou em questionar-lhes o passado. Dizia-se que eram irmãs mas ao certo só se sabia que eram do Porto e aventureiras. Concorreram com uma proposta para um “café” e restaurante e obtiveram os espaços e até dinheiro. Agora, prontas para abrir as portas do negócio, ali estavam, risonhas e frescas, a exigir, com bons modos, a ligação à estrada nacional e a reparação da ponte. Nas folgas viam-nas à conversa com dois ciganos mas ninguém achava importante o derriço. A verdade é que as coisas também ali sofriam acelerada mudança. Pois não assumira a Otília o namoro com o Joel? Não se preparava a Adelaide para casar com o Regedor? Não se juntara o André da loja com a Licas que, por sinal, até tinha a mesma idade, isto é, anos suficientes para ter mais juízo?
Tantas eram as novidades que já não se valorizavam censuras e já ninguém se deixava marginalizar por quezílias destas. A aldeia de S. Bonifácio era uma realidade e não um conjunto de ruínas e isso é que importava mesmo considerando que a velha Luísa ainda amaldiçoava as alterações do lugarejo e que o ti Luís se finara do coração quando lhe deitaram a cerca abaixo para alargar a estrada.
No solar dos ciganos também muita coisa estava diferente. Madalena parira mais uma menina e o António Maria, o das vacas, voltara a casar depois de uma curta ausência. Ainda conviviam nos espaços comuns do velho solar mas uma nova tendência para a separação por famílias começava a acontecer, sobretudo depois que a Otília declarou que, com o Joel, ou vivia na sua casa ou nada feito! A comunidade renascia com outros horizontes e novas perspectivas embora alguns, ao regressar, tivessem tentado reaver os anteriores estatutos e propriedades, coisa que a D. Adelaide Melo, na sua fúria de implantação, a seu tempo, acautelara em relação ao que fora ocupado e ao que viria a ser útil no futuro...
E o porvir haveria de trazer a S. Bonifácio o pintor que abriria o “atelier” que os turistas visitavam; a Alzira costureira que viria a casar com o sacristão; o Daniel do táxi que apostara nos encantos da serra e, mais tarde, por justificada, a Genoveva parteira. Ainda se tentou a transferência dos ciganos para lá do burgo mas, com a Otília a fazer força, ficou tudo como estava, isto é, o clã reunido em apartamentos separados pelos antigos lances de escada e o pátio para usufruto de todos os que, saudosos de anarquia e liberdade, ainda dançam e cantam à roda da fogueira mesmo sem ser noite de S. João.
FIM