O Pedófilo

- Pode deixar ele passar.

No meio do tumulto armado em frente à porta daquela pequena sala reconheci a voz que fizera o pedido. Três ou quatro jornalecos de bairro e duas televisões entupiam o corredor de acesso, fazendo perguntas aos berros para qualquer um que circulava por ali. Um rapaz de cabelos bastante grisalhos para a sua idade encarava os repórteres com um olhar lânguido, e respondia algumas perguntas de forma monossilábica, enquanto mexia seu café num copo de vidro. Destes ensebados de boteco.

- O senhor deveria desfrutar do seu direito de se manter calado. Se falar com qualquer um deles, vai ficar difícil fazer algo a seu favor.

- Tudo bem. É só um velho amigo.

Confesso que era preciso ter estômago para lidar com aquela gentalha todos os dias, mas, de alguma forma, me sentia melhor. Pelo menos não teria mais que acordar às cinco da manhã e entrar num terno barato para anotar os vômitos da especulação econômica.

Havia somente duas pessoas na sala minúscula e abafada. Um homenzinho careca que usava óculos bifocal escondia a boca com a mão ao cochichar qualquer coisa com o homem ao seu lado. Este, por sua vez, permanecia em silêncio com as mãos espalmadas apoiadas numa mesa antiga de madeira vagabunda e surrada.

O grisalho me acenou levantando o copo de café como permissão de entrada, e assim o fiz, deixando os sanguessugas espremidos na porta. Enquanto puxava a cadeira para me sentar, o homenzinho atarracado segurava um isqueiro aceso para o acusado, que parecia bem concentrado no momento.

- Grande Bruno! Você chegou a se formar? - lanço a isca, sem saudações.

- Claro. – ele responde com a fumaça ainda no peito.

- Hm..e ai, tá nessa a negócios ou de férias?

Sua tragada é paciente. Mesmo com o barulho ambiente consigo ouvir o tabaco estalando.

- De férias. Ainda não ouvi falar de especulação neste mercado pra poder te abrir uns números. – ele diz com seus pequenos olhos de réu, soltando a fumaça com as palavras.

- Não tem problema, não. Não tô mais esparramando aquela porcaria de finanças. – digo, mostrando que não é só uma visita de broxas de faculdade.

O homenzinho agora parecia impaciente com a minha presença, dando pequenos sinais a Bruno, que não dava a mínima. Ele havia sido um aluno regular, a meu ver devido mais ao seu sarcasmo e indiferença do que a sua falta de inteligência em si. Um carinha qualquer. Exceto pelo conjunto dos olhos verdes com a boca sempre lubrificada.

- O que você fez com a menina? - pergunto sem rodeios.

- Pensei que você iria aproveitar a oportunidade pra perguntar algo que ainda não sabe. – ele rebate apagando o cigarro na mesa, bem ao lado do cinzeiro.

- Tudo que sei é que o laudo encontrou uma fissura na vagina.

- É...- ele pondera cruzando as pernas – isso é comum em qualquer defloração.

O rosto de Bruno é completamente amigável. Não há sinais de frieza. Nem mesmo consigo notar seu sarcasmo universitário. Que haveria acontecido com esse cara?

- Claro, tudo é muito comum. Exceto pelo fato da garota ter O-I-T-O anos. Porra Bruno, o que aconteceu com você depois que cê se formou?

- O Sr. Biasi só vai responder este tipo de pergunta sob juramento no tribunal! – interrompe o atarracado de bifocal, formando uma bolha de baba no canto da boca.

Bruno simplesmente virou o rosto para o advogado com aqueles olhos de peixe morto, pressionando o lábio inferior pra cima. Mas dessa vez não se conteve.

- Eu só tô querendo te proteger Sr. Biasi. Se você responder este tipo de questio...- antes de terminar a frase Bruno fizera um gesto para o guarda que auxiliava o segurança na porta.

- Por gentileza, você pode mostrar onde é a saída pra este senhor.

- Mas, Sr. Biasi...você tem que entender que eu estou aqui para te aju...- resmungava o bifocal enquanto sentia seu braço sendo esmagado pelo guarda.

- Mais cinco minutos pra terminar o show, hein, seu escroto! – rosnou o corpulento guarda para Bruno, segurando o velhote pela parte de trás do colarinho da camisa.

Assim que a porta foi quase arrancada pela batida, continuei sem perder tempo.

- Olha Bruno, eu não vim aqui te usar como pauta, cara. Desde quando você gosta de crianças?

- Desde o primário. – disse ele colocando as mãos embaixo das axilas.

- Ah, interessante – dei uma risada forçada – e onde você acha que esse papinho de estuprador de bairro vai te levar, seu otário?

- Bem...- ele ponderou revirando os olhos para a esqueda e arqueou as sombrancelhas – parece que eu não quero ir muito longe, não?

O que me incomodava era que, enquanto dizia estas palavras, ele demonstrava uma sinceridade quase pueril. A boca entreaberta, as sombrancelhas levemente arqueadas. Não havia frieza nem estupideza. Não se fazia de mártir nem de psicopata.

- Corta essa merda! Tantas mulheres pra você comer, por que transar com crianças?

- Isso realmente te incomoda – disse ele, recostando na cadeira.

- Claro, porra! E se fosse sua filha? Hein? Queria ver se você ficaria com essa cara de bunda.

- Eu não tenho filhos.

- Mas poderia ter – eu disse.

- Veja bem, Alex – disse ele enquanto coçava a perna – eu vivo com o que eu tenho. Poderia ter muitas coisas, e assim me portaria de alguma forma a respeito delas. Não violentei a garota. Talvez ela esteja apaixonada por mim, mas não posso fazer nada a respeito disso.

- Apaixonada? Como uma garota de oito anos pode se apaixonar? Isso é coisa da sua cabeça doente, Bruno!

- Sim, é bem provável. Mas geralmente é assim também com pessoas de qualquer outra idade.

Não entendia onde aquele babaca queria chegar. Me levantei da cadeira e apoiei os braços na velha mesa, que emitiu um leve ruido com o peso do meu corpo. Procurava dar o ar necessário para encerrar a discussão com um argumento que deixaria Bruno divagando durante todo o seu longo tempo na prisão. Sim, na prisão. Este era o lugar de gente assim. No entanto, foi ele quem falou.

- Não houve violência, Alex. Gostei da menina e transei com ela, porque ela permitiu. As leis são criadas para situações e atitudes que não entendemos, ou não temos conhecimento pra resolver. Não me incomodo de ser preso, porque eu entendo vocês. Eu entendo vocês.

O segurança entrou na sala lentamente, indicando que o tempo havia se esgotado. Um silêncio complacente instalou-se no ambiente. Geralmente é assim quando uma liberdade é compreendida. O silêncio. Bruno se levantou. Parecia calmo. De certa forma ele me surpreendeu. Não havia violência sequer nas suas palavras.

- Vamos, boneca. – susurrou o enorme segurança ao acusado – A galera está ansiosa pra te conhecer no xadrez.

Permaneci sentado na cadeira sem saber o que fazer. Bruno não precisava daquilo. Olhando para trás, nunca podeira sugerir um destino como este a ele.

- Estou condenado porque pessoas como você têm medo de pensar. – disse Bruno Biasi encostando sua mão em meu ombro.

Dam Barba
Enviado por Dam Barba em 15/10/2009
Código do texto: T1866872
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