Humilhação
Marilia desconhecia o tratamento pré-natal, algo que nunca ouviu falar nem tampouco imaginar. Se tocada por um homem que não o fosse seu, fugia dos padrões morais e religiosos a qual fora criada.
Quarto mês e gestação, fortes cólicas, presença de sangramentos, inchaço dos membros inferiores e superiores, enjôos, fraquezas e a timidez e debilitação daquela jovem perante a intolerância dos patrões.
Na função de ajudante de serviços gerais, não havia moleza. Trabalhava todos os dias arduamente sob os olhares e gritos intimidadores das pessoas que a cercavam.
Betão era o segurança particular da empresa. Um ex policial, que fora expulso da corporação por praticas de má conduta. Como era de praxe atuar sorrateiramente, num final de tarde chuvosa, enquanto todos haviam ido embora, invadiu o vestiário feminino a qual Marilia se encontrava, sozinha e a violentou. Prometeu mata-la caso alguém soubesse do ocorrido.
A pobre moça passou a viver assustada, pressionada e cobrada. Assustada pelas ameaças do homem que a molestou, pressionada pelo seu noivo machista que não aceitava seu trauma, e cobrada por melhores atuações no ambiente de trabalho.
O pior aconteceu. Grávida, abandona pelo noivo, e demitida, encontrava-se sozinha, sem dinheiro, sem apoio de ninguém e em frágeis condições físicas e psicológicas. Tanto desespero a qual se encontrava, pensamentos turvos não lhe faltavam. Perguntava-lhe o porquê daquelas humilhações. Chegaram a cogitar em sua família que, naquele ventre carregava um bebê de aluguel.
Já que não havia alternativa par aquela situacionalidade, resolveu ir ao médico e amenizar o desconforto e as dores que as incomodava.
Hospital público, depois de vários dias de aguardo, finalmente fora atendida por um especialista. Um sujeito indelicado e arrogante que mal perguntou seu nome ou pelos seus sintomas. Sentia-se violentada pela segunda vez e o pior é que, desta vez, o homem sequer ameaçou, apenas desferiu impetuosamente sobre seus pudores e, como um leão selvagem rosnou meia dúzia de palavras e a dispensou.
Marilia, ao sair, sensivelmente humilhada, chorou. Estava mais certa do que nunca do destino que iria tomar. Estava irreversível sua situação e, naquele momento, só a morte seria o alivio para tanto sofrimento.
Ao passar próximo a uma banca de jornal, ainda com os olhos intumescidos, uma capa de revista lhe despertou curiosidade. Talvez fosse a última da sua insignificante vida.
“Humilhação, Vergonha e Honra”.
Curiosamente acabou comprando, assentando-se numa praça qualquer, passou a ler:
“A humilhação pode destruir o auto-respeito e, portanto, acabar tornando inviável a construção do respeito entre as pessoas, conseqüências igualmente prejudiciais [...] quanto aos relacionamentos inter-individuais e sociais. Acarreta, na maior parte das vezes, uma dor que “mata aos poucos”. De acordo com Chaves (1998, p. 9), “a morte mata, ou apressa o fim do que necessariamente há de morrer; a infâmia afronta, afeia, escurece e faz abominável a um ser imortal, menos cruel e mais piedosa se o puder matar”.
Há várias formas de humilhação, dentre elas a pior de todas; a “violentadoras” (LA TAILLE, 2000; 2002). Esse tipo de humilhação ultrapassa os limites da tolerância e não admite reciprocidade entre o agressor e a vítima. Caracteriza-se como violentadora principalmente por objetivar incidir sobre aspectos centrais da personalidade da vítima, que, por sua vez, deve concebê-la da mesma forma. Assim podem ser consideradas a calúnia, a difamação e a injúria, que são classificadas entre as “responsabilidades civis por dano a honra” (AMARANTE, 1998) ou como “crimes contra a honra” (ARANHA, 1995). Segundo Aranha (1995, p. 5), “a objetividade jurídica das normas que definem os crimes contra a honra está contida na preservação da personalidade moral do indivíduo, na integridade de tal patrimônio moral, reconhecendo a lei da honra como um dos valores relevantes de sua pessoa”.
Tudo aquilo se resumia em “falta moral”. O envergonhado e/ou humilhado atribui a si a responsabilidade pela falha moral. Harkot-De-La-Taille (1999) cita como exemplo o fato de que, na tortura, pode haver o sentimento de vergonha por falta moral: o torturador, por tratar um ser humano com o objetivo de obter vantagem; o torturado, por ceder as pressões da tortura, humilhação e da honra”.
Marília suspirou fundo e gritou: pro inferno todo mundo, eu vou à delegacia agora mesmo!
O delegado escutou minuciosamente o que a pobre moça dizia. Por fim, indiciou todos:
Primeiro foi o malfeitor do Betão por estupro e ameaças de morte. Segundo seus patrões, por humilhação a honra e a moral e constrangimentos. Terceiro o médico, por má conduta ética e profissional e atentado ao pudor. Os demais por calunia de difamação e danos morais.
Vitoriosa pelos seus atos decidiu praticar o aborto e retomar sua vida bem longe daquela cidade. Com o dinheiro indenizatório, ingressou nos estudos, dois cursos simultaneamente:
Direito, para defender pessoas que passam pelo mesmo constrangimento que ela viveu.
Filosofia, a amiga da sabedoria que, através desta, pode enxergar o lado bom da vida.
Humilhação é crime. Podendo aquele que desfere ser processado por difamação, racismo, preconceito, danos morais, constrangimento ilegal, assedio moral e perjuri.
Texto elaborado pelo Prof. Sérgio Russolini – Língua Portuguesa e Filosofia.