O asilo
Conviver sob o mesmo teto é quase uma arte. Principalmente quando começam o desgaste natural do relacionamento, o desamor e até o desrespeito. Quando as tardes, as noites ou mesmo os dias tendem a ficar cansativos; o desalento insiste em permanecer, o diálogo submergindo gradativamente, não há alternativa: - cada um deve seguir o seu caminho.
Marcelo e Carla protagonizaram essa ocorrência. Viveram dias amargos. Um tendo nojo da cara do outro. A ausência de um era a satisfação do outro.
Casados há 06 anos, dois filhos: Mariana e Vinicius, 05 e 03 anos, respectivamente. Carla tinha pelos descendentes, verdadeira adoração, mas abominava imaginar que o desprezo entre ela e Marcelo, pudesse ser percebido pelas crianças. Embora, elas não entendessem, podiam sentir... Tinha que tomar uma decisão urgente e seria hoje:
Marcelo chegou do trabalho por volta de 19:00 h e Carla, de sentinela na sala, foi logo dirigindo-lhe a palavra:
- Marcelo! Vamos definir nosso relacionamento neste momento. Não há mais tempo.
- Mas, Carla! Você...
- Marcelo, preste atenção ao que estamos vivendo há pelo menos três meses... Não há reparos possíveis para o nosso relacionamento. Como tenho as crianças para cuidar é justo que você arrume outro lugar, a partir de hoje; – a casa de seus pais, talvez...
- É definitivo, Carla?
- Sim, Marcelo. Quero você fora desta casa em menos de 1 hora.
Marcelo juntou suas coisas e foi para a casa da mãe. Carla, como propôs: continuaria naquele apartamento, cuidando dos filhos. Antes, porém, disse a Marcelo que com relação às crianças, ele poderia vê-las a hora que julgasse conveniente, desde que respeitasse algumas regras: horário de escola, deveres de casa... Não necessitaria buscar o judiciário para solucionar uma lide tão simples. Excetuando-se as regras propostas, a sua entrada no apartamento estava liberada. Contudo, a sua presença esporádica não a incomodaria. Ademais, uma separação não necessita, essencialmente, ser litigiosa. Podem e devem continuar amigos. Aliás, de um lado é o pai de meus filhos; e de outro a mãe de meus filhos...
Marcelo trabalha numa empresa fabricante de peças para veículos pesados. Ocupa uma gerência na linha de produção. Técnico em Mecânica. Ingressou na faculdade de Engenharia Mecatrônica, cursou dois períodos e afastou-se... Este afastamento, no entanto, auxiliou demasiadamente a desgastar o relacionamento com Carla. Todas as tardes após o trabalho, ao invés de ir para casa ou estar na faculdade, estava em bares bebendo; - o dinheiro sumindo... Uma atitude de adolescente, o que evidenciava a descaracterização, pois, contava com 36 anos.
Marcelo, apesar da proposta de Carla em poder estar com as crianças quando quisesse, desde que respeitadas algumas regras, não surtiu efeitos positivos: - pouco procurava as crianças. Evidenciava o quanto era relapso.
Carla, 28 anos, trabalha numa empresa de publicidade, bem conceituada. É bacharel em publicidade e propaganda. Não tem um salário que poderia se considerar alto, mas suficiente para pagar escola particular para os filhos, empregada, despesas gerais do apartamento e ter seu carro. O apartamento foi doação do pai. Diante disso, não exigiu de Marcelo pensão alimentícia para as crianças; apenas estipulou que, caso ele espontaneamente quisesse, pagar a escola de uma delas. Mas, Marcelo, ainda não havia se manifestado favorável à estipulação de Carla.
Marcelo continuava a mesma rotina: - durante o dia o trabalho, à noite os bares. A bebedeira. Certamente o motivo da não manifestação estaria no desequilíbrio econômico, em função das exorbitantes contas em bares. Em cinco meses de separação esteve com as crianças apenas três vezes. Mas Carla preferia ao invés de cobrar de Marcelo que amiudasse as visitas, tentar substituí-las estando mais presente das crianças. Não queria, na verdade, ser chata. Era maior de idade, vacinado e pai. A responsabilidade com os filhos tinha que ser espontânea.
Carla, mulher de personalidade muito forte, não deixava transparecer alguma dificuldade de conciliação dos horários de trabalho, com a escola, as reuniões, o dentista, o médico... – tudo que demanda para cuidar de uma criança. Embora, com muita ocupação na direção da microempresa, o pai de Carla, auxiliava-a muito no manejo com as crianças. Aos sábados passava no apartamento de Carla, pegava as crianças e as levava para passear. E Marcelo sempre ausente; principalmente aos sábados com churrascos aqui ou ali, casa de amigos...
De toda sorte as crianças não tinham pelo pai grande adoração, pouco falavam nele. As idades também contribuíam para que a ausência dele não fosse percebida. Carla não abria mão das “coisinhas” mais queridas da sua vida: - Mariana e Vinicius. Poderia até relacionar-se com alguém. Havia muitos. Era ainda muito jovem, educada, boa formação; cuidava-se bastante do visual: cabelos castanhos constantemente escovados, olhos negros, corpo escultural. Uma jovem linda, tanto fisionômica quanto espiritualmente. Mas, tudo isso deixaria para depois. Na hora oportuna. Não aceitaria estar com alguém e sentir que seus filhos precisassem dela. Não tinha nenhuma pressa; num futuro bem próximo conseguiria esta conciliação.
Sexta-feira à noite, toca a campainha: - era Marcelo. Carla abriu a porta, cumprimentou-o com docilidade e foi para a cozinha, dando-lhe liberdade para ver as crianças. Devia ser aproximadamente 8:00 h, dada a programação anunciada na televisão. Carla percebeu que Marcelo àquele horário já havia bebido; o cheiro era forte, exalava...
Marcelo foi aos quartos das crianças, brincou e, ao final entregou-lhes: uma linda boneca para Mariana e um carrinho de controle remoto para Vinicius. Mas, queria algo mais. Não somente ver as crianças ( depois de tanto tempo... ); queria falar com Carla. Chamou-a:
- Carla preciso falar com você! – Posso?
- Sim Marcelo. Afinal, não somos inimigos: apenas não habitamos o mesmo teto. – Pode falar!
- Carla, não há nenhuma dúvida que eu fui o único causador da nossa separação. Portanto, humildemente admitindo tal falha, proponho-lhe que voltemos a habitar o mesmo teto.
- Marcelo, embora eu ainda sinta algo por você, tenho a convicção que não quero definitivamente morar mais com você. Não importa o que você fez, ou não fez. Antes de tomar a decisão da separação eu analisei todos os prós e os contras...
- Mas, Carla! Talvez com alguns ajustes, a gente se ajuda e possa reconstruir tudo.
- Marcelo! Não vou mentir para você que não me relacionei com ninguém ainda e que gosto muito de você. Sim, gosto muito. Como já disse e repito: - você pode vir à hora que você quiser – tão somente para ver seus, aliás, nossos filhos. Mais nada. Peço-lhe, na oportunidade, não tratar mais desse assunto de reconciliação comigo. Seja muito feliz, Marcelo...
- Está bem Carla, entendi perfeitamente. Você não quer mesmo que reconciliemos. Então, seja muito feliz também...
Manhã linda de sábado. Céu limpo. Sol brando. O pai de Carla, como de costume, buzina na entrada do prédio. Iria ao supermercado e gostaria que as crianças também fossem e, se Carla precisasse de algo traria para ela. Buzinou mais uma vez. Carla aparece e sorridente convida-o a subir.
- Feche o carro e venha, pai!
- Não, Carla. Passei para perguntar-lhe se precisa de algo do supermercado e, claro, convidar meus netos para irem comigo.
- Pai! Vou precisar que você traga algumas coisas pra mim. Pouca coisa, na verdade. Estive lá na segunda-feira.
- Mariana e Vinicius já estão acordados, Carla?
- Não pai. Desta vez, nem eles nem você tiveram sorte. Estão fazendo meia noite.
Carla entrega-lhe a listinha e o dinheiro, este é imediatamente devolvido e ainda xinga:
- Você acha que estou falido, Carla? – Fala com cara fechada, depois solta aquela gargalhada, emendada com a de Carla. E vai, prometendo não demorar muito.
Pouco mais de duas horas está de volta. Além da listinha, trouxe, ainda, as guloseimas de todos os sábados. A inconstante presença do pai fazia com que as crianças aproximassem mais do avô. E isso, lógico, vinha causando ciúmes até mesmo na avó: “ele não fica mais em casa – volta e meia tem de ir à casa de Carla” - reclamava a ciumenta avó. Aos sábados e domingos ia pelo menos três vezes à casa de Carla. Às vezes, Carla tinha que olhar três crianças...
Marcelo, no entanto, vinha melhorando as suas visitas às crianças. Aparecia com mais frequência e tentava participar mais na educação dos filhos. Passou a pagar as duas mensalidades escolares, o que foi questionado por Carla: “vai fazer falta para você, Marcelo!” Mas ele afirmou com certa segurança que não lhe faria nenhuma falta, pois já tinha orçado tudo. Ambos se limitavam ao convívio pelas crianças, nada mais.
No sábado vindouro, Marcelo não iria visitar as crianças. Participaria, durante todo o dia, de uma festa de aniversário na casa de um amigo de trabalho. Visitou as crianças na sexta-feira, ocasião em que percebeu Carla muito bem humorada, aliás, mais bem humorada. Estava sempre de bom humor. “Também uma mulher linda, com filhos lindos, não havia motivos para torná-la mal-humorada. Não fossem as falcatruas impensadas, a desatenção ao seio familiar – estaria com Carla – a mulher que realmente amo - pensou Marcelo.” Olhou com profundidade, bem nos olhos de Carla, despediu-se e saiu...
Levantou cedo naquele sábado. Por ter ficado com Carla e as crianças na noite anterior, não teve oportunidade de beber. Não sentia nenhuma indisposição hepática: - ressaca, propriamente dita. Tratou dos passarinhos. Deu ração aos cães, pôs água. Tomou café e foi tomar o banho para sair. A casa do amigo ficava a 40 minutos, mais ou menos. Tinha que sair mais cedo, passar em uma loja para comprar o presente para o Lauro, o amigo aniversariante. Preparou-se, pegou o carro e rumou a uma loja. Comprou uma bela camisa para o amigo. Logo, logo estaria em sua casa.
Chegou em bom horário. Cumprimentou a todos, foi apresentado à esposa de Lauro, aos dois filhos. Começavam a cortar os primeiros pedaços de carne assada, o freezer lotado de cerveja, alguns litros de uísque em cima da mesa entre outras bebidas. Crianças brincavam pelo espaçoso quintal, enquanto pais e mães bebericavam cerveja, comiam carne e batiam papo. Papos, aliás, exclusivo para aqueles encontros – nada com nada. Ora cerveja, ora uísque e a tarde foi passando. E, claro, a maioria em completa embriaguez. Um ou outro mais esperto, ou apenas responsável, não misturou uísque com cerveja. Aqueles que têm educação e limites até para beber. Racionais. Ao contrário, outros não tinham educação tampouco limites, dentre eles Marcelo. Bastava começar que enquanto a barriga coubesse ia bebendo.
Aproximava-se o crepúsculo vespertino. Muitos já tinham ido embora: - os educados e limitados. Outros, visivelmente embriagados continuavam a beber. Cervejas e mais cervejas. No freezer ainda tinha muitas garrafas. Não comiam mais, bebiam... Marcelo, o mais falante. Aliás, sempre que embriagava falava descontroladamente. Tornava-se chato e usava palavras extremamente agressivas.
Adentra a noite. E mais alguns com certa dificuldade, iam se dispersando; indo embora. Marcelo, não desgrudava do copo. Lauro o advertiu que ele não tinha a mínima condição de dirigir. Foi a gota d’agua. Marcelo levantou-se, quase caiu, anunciando que iria embora. Lauro aproximou mais uma vez e pediu-lhe que deixasse o carro e fosse de taxi. No outro dia buscaria o carro, ou Lauro o levaria até a sua casa. Lauro usou de todas as tentativas para que Marcelo não fosse para casa dirigindo: - não chegaria - imaginou. De nada adiantou. Custou a entrar no carro.
Num entroncamento a três quarteirões da casa de Lauro, Marcelo comete o previsto: - ao entrar no entroncamento, á direita, virou a direção do veículo, não controlando os reflexos para desvirá-la; subiu na calçada atingindo uma senhora que iria a um culto religioso em uma igreja nas proximidades. A senhora caiu e o veículo foi espremendo-a ao murro, a Bíblia jogada a um canto, e sangue por todos os lados; - morte instantânea. Os transeuntes que transitavam e presenciaram a tragédia, chamaram a polícia que não demorou 10 minutos. De armas em punhos os policiais gritavam: - saia do carro com as mãos na cabeça. Não houve nenhuma reação, Marcelo devia estar em coma alcoólico. Os policiais aproximaram-se e o arrastaram para fora do veículo. Perceberam que Marcelo estava completamente embriagado. Colocaram-no na viatura. Prisão em flagrante delito.
No outro dia, Marcelo acordou na prisão. Não se lembrou de tudo que acontecera. Apenas alguns detalhes, como: a implicância de Lauro para que ele deixasse o carro e fosse de taxi, e quando entrou no carro... A família contratou um advogado criminalista para cuidar do caso de Marcelo. Julgado, Marcelo foi condenado à prestação de serviços sociais, sendo designado para a Casa de Repouso D. Miguel.
Transtornado, Marcelo decretou a abstinência total do álcool em sua vida. Cumprida a sentença judicial, pediu ao presidente da entidade que o aceitasse como voluntário, alegando que precisava fazer ainda muito para o semelhante, pois, sentia que não havia reparado todo o mal causado... Havia Perdido tudo... tudo!