Seu Bastião
Cabelos e bigodes totalmente brancos pela ação dos anos,
chapéu na mão, usando paletó de brim - costume que herdara
da moda de época remota - ,Seu Bastião caminha quase se ar-
rastando pelas calçadas, de volta à sua morada.Indiferente
à ação do sol causticante que reflete em seu físico, ele an-
da equilibrando-se em pernas trôpegas.Afinal, fora acostuma-
do, jovem ainda, a trabalhar de sol a sol, no sítio onde foi
criado com sua família:os pais e oito irmãos.Agora, só resta-
va ele, e já naquela idade.
Andava a esmo.O idoso gosta de andar assim, quando não tem
o que fazer.A aposentadoria é insuficiente e falta força e a-
gilidade para enfrentar o trabalho.Seu Bastião ri com amargu-
ra: "Dei tudo de mim ao trabalho e hoje não tenho nada".Ain-
da bem que podia pagar o aluguel no Abrigo para Idosos, onde
mora.
Tirara permissão para visitar um amigo, companheiro de ju-
ventude, nos tempos do sítio.Bater papo com esse amigo era
seu hobby, relembrar com ternura seu tempo de moço,suas aven-
turas, sua fama de rapaz conquistador pois, quando jovem,
fora bonito, era o que todos diziam.Ele se aproveirata desse
fato para "conquistar corações".Despedaçara muitos deles,mas
o que fazer? Ele era apenas um e as moças eram tantas!Então,
só restava tapeá-las,alternadamente, para ter o amor de to -
das (como se vê,hoje é como antigamente!):"Belos tempos!"-re-
lembra Seu Bastião,com saudade, esboçando outro sorriso amar-
go.Conhecera aquela que escolhera para sua companheira e que
o fora por tantos anos, até que a morte os separou.Não tivera
filhos. Talvez, se assim não fosse, ele não estaria em tama -
nha solidão.
Seu Bastião chegou, afinal, ao Abrigo.Ao passar pelo pá -
tio, cumprimentou alguns companheiros de morada, com acenos
de mão.
-Voltou do passeio, hein Tião? - perguntou um velho de
boca escancarada que mostrava apenas um dente na gengiva
vermelha.
-Tou chegando,Quincas.E aí?Alguma novidade?
-A gente teve hoje uma visita diferente: um grupo de
senhoras nos trouxe um lanche muito gostoso.Muito decentes,
as senhoras.Depois do lanche, visitaram nossas instalações
e conversaram muito com a gente.Foi muito bom;é pena você
ter saído.A Dona Gertrudes guardou lanche pra você.
-Tá bem,Quincas.Vou para o meu quarto tomar um banho e des-
cansar um pouco.Mais tarde a gente se vê.
A tarde estava muito quente e assim que entrou no quarto,
Seu Bastião foi tirando as calças e qual não foi o seu espan-
to quando, empurrando a porta que estava apenas semicerrada,
Dona Gertrudes entrou de solavanco.Ao lado da parede estava
Seu Bastião de cueca samba-canção.Foi um sufoco para os dois.
-Me desculpe, Seu Bastião- disse a velha, voltando-se rápi-
do, de costas.Encaminhou-se para a porta e saiu sem graça,com
um pratinho na mão.
-Um momento só, Dona Gertrudes.Vou me vestir e a senhora
poderá entrar(coisa que hoje é insignificante pra muita gen-
te).
Pela frente do quarto passava a Dona Maria que vinha da ala
feminina.
-Ué, Dona Gertrudes, o que tá fazendo aí?Parece que viu a
morte?
- E vi.Pior ainda:Seu Bastião de cueca samba-canção!- co -
chichou no ouvido da companheira.
A porta do quarto abriu-se de novo e Seu Bastião mostrou um
sorriso amarelo.
Dona Gertrudes falou antes dele:
-Desculpe, Seu Bastião.Como vi o senhor entrando no quarto
naquela hora, não imaginei que tirasse a roupa tão rápido.
- A falta maior foi minha; deveria ter trancado a porta.Não
vai acontecer mais. A gente depois de velho fica distraído.
Mas, deixa pra lá.A senhora queria...
-Entregar ao senhor esse lanche que guardei.Umas senhoras
trouxeram...
-Hum, hum, Seu Quincas me contou.Muito obrigado.
-Não por isso, Seu Tião.Amigo é pra essas coisas.Até logo.-
E seguiu com a Dona Maria, de volta à ala feminina.
Seu Bastião, à frente da TV preto-e-branco, lanchava satis-
feito, lembrando do olhar espantado da Dona Gertrudes ao vê-
lo de cueca.Sorriu.
Sozinhas, as amigas riam do acontecimento:
-Em todo lugar acontece fatos pitorescos, até mesmo num
abrigo para idosos - comentou a Dona Gertrudes.
-Recordou o passado, hein, dona?- falou a amiga em garga-
lhadas.