D. Primorosa (Conto real)

Era uma vez (assim começam todas as histórias) uma menina que teria uns doze anos, vivia descalça, livre e afogueada de tanto que corria. Corria para competir, para, simplesmente, não ficar parada e porque a agitação sempre fez parte dela. Dentro do contexto em que vivia, a menina era feliz, não carecia de muito, tinha família, amigos, campo para brincar e escola, claro, onde tinha de estudar.

Ao lado vivia uma bonita senhora, alta e magra, mas analfabeta e cuja família vivia longe, o que a obrigava à troca de cartas. A mãe da menina lia quando chegavam de longe as missivas e, depois, respondia em nome da senhora, rigorosamente, o que ela lhe ditava.

Naquele tempo o correio ia de navio pelo que o intervalo entre a chegada de carta e a respectiva resposta era de quase um mês.

Um dia a mãe da menina ficou doentinha e a menina ficou com a incumbência de escrever a carta de resposta.

As mães mandavam, filhos obedeciam e assim a menina pegou essa tarefa feita na mesa da sala de jantar.

A senhora, D. Primorosa, foi ditando e logo na primeira frase, a menina resolveu dar um toque diferente, porque achou banal o que ela ditava “como estão todos de saúde, nós estamos bem graças a Deus”, o resto lá foi sendo escrito com letrinha bem feita, o O tinha tracinho no meio o B maiúsculo possuía duas barriguinhas, o R tinha voltinha no começo e, no fim, até o V era uma beleza de rigor voltinha final, tudo como ela havia aprendido, tudo ligadinho, no capricho, com toda a boa vontade.

Depois de finalizada a carta, D. Primorosa mandou que a menina lesse e ela esqueceu que tinha enfeitado a primeira frase.

Foi aí que tudo começou, D. Primorosa ficou vermelha, irritada e a menina aflita disse “olhe como o seu nome faz duas palavras “Primo e Rosa”.

De verdade ? - perguntou ela incrédula. Sim, respondeu a menina aliviada por ter desviado a ira de um adulto que se sentiu traído. E assim do sobre nome, ela já queria que se fizesse outras palavras e não dava, a menina pegou o C e disse que se juntasse com o A que tiraria do rosa mais o S e outro A, faria casa.

E foi quando ela perguntou se lhe ensinaria a escrever. Fechado e segredo para o mundo, foi cláusula dita, assumida e cumprida.

Todos os dias depois de ela ter feito as tarefas domésticas, botar filhote mais novo na cama para dormir a sesta, pontualmente ás 14 horas, as duas se juntavam e só de caderno e lápis, de palavrinha em palavrinha, o abecedário como tarefa, D. Primorosa aprendeu a escrever.

A primeira carta tinha alguns erros, mas estava legível, com todas as perninhas, letra juntinha num esforço grande que a menina a via fazer.

E foi escrevendo e conseguia ler também a que recebia, escrita á mão e do mesmo jeito que a menina fazia, com as letrinhas redondinhas, com as perninhas, os tracinhos.

Feliz, D. Primorosa sabia já escrever, só que a menina nunca lhe mostrou letra de forma, nunca lembrou desse detalhe e um dia, ela foi ao cinema com o marido e ao outro dia comentou: - como é que eu sei escrever e não sei ler as legendas do filme?

Até hoje a menina carrega esse peso no coração, meninas daquele tempo, não tinham a astúcia nem a agilidade das meninas de hoje e a letra de forma era muito diferente da letra que se escrevia.

A menina não viu mais D. Primorosa, ela se mudou, a menina foi para outro país também e ainda se pergunta: - será que D. Primorosa já consegue ler um livro, as legendas de um filme?

Paula Castanheira
Enviado por Paula Castanheira em 12/10/2009
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