O COLETIVO

A história que vou contar não é feita com o esmero, a composição, a intenção nem a verve literária de um Dante, Ovídio, Saramago, Guimarães Rosa e de tantos outros que enobrecem a literatura universal. Também poderia ter sido vivida por muitos outros mais talentosos, mas, desculpem a modéstia, não refletiria a mesma verdade e sentimentos, porque esses são únicos e pessoais, portanto, cada qual expressa de modo individual.

Então... se a memória é o baú da vida, chegada é a hora de abri-lo.

Morava na Av. Regente Feijó, Água Rasa, zona leste de S.Paulo. Trabalhava de boy, na Sé, e o Tróleibus, nome técnico para ônibus elétrico, vinha da Vila Formosa apinhado de gente; raramente se conseguia entrar no primeiro sendo só possível no terceiro ou quarto. Como a rotina era essa rotina, quase todos os passageiros se conheciam. Às vezes nos cumprimentava com um “bom dia” ou um simples acenar com a cabeça, e a deferência era entendida. De nome, conhecia uns poucos e a grande maioria era composta de marmiteiros assumidos. Era comum um segurar a bolsa do outro, afinal estavam todos no mesmo “barco”, na lida diária, na luta pela sobrevivência.

Não sei o porquê, mas um belo dia uns vizinhos disseram que a partir do dia seguinte, haveria, na Rua Água Rasa, um final de ônibus com partida, de segunda a sextas feiras, das 6:30 às 7:30, com destino à Sé. E foi nesse novo horário que conheci uma nova turma. Composta basicamente de jovens como eu, a algazarra era tanta que quando faltava Dinho, o mais engraçado de todos, o coletivo ficava sem “vida”. Dinho era um desses rapazes para o qual a vida era um grande circo: tudo pra ele era motivo de piada, todas muito respeitosas, que até alguns mais adultos, com o tempo, começaram a pedir “conte aquela”, “a da velha surda”, “a do delegado”, etc, etc. Isso quando não se punha a cantar e, aí, a festa, as risadas e os desafinos de Betão, tornavam a viagem um grande passeio. Até o cobrador participava; o motorista, ou motô para alguns, dava seu assentimento pelo retrovisor.

Entre o Parque Dom Pedro e a Sé começavam a desembargar os passageiros. A despedida era geralmente um “até amanhã”, “ficou devendo a da Velha”, “Vai com Deus”, ”Bom Trabalho”.

E assim começava meu dia: uma festa dentro do coletivo para enfrentar mais um dia de trabalho. Pena que hoje não existe mais essa linha. O metrô assumiu, com mais agilidade, seu lugar, mas não vemos mais o cobrador, o motorista e Dinho, Betão e Samanta (apelido do Ricardo) casaram. Dinho foi para os Estados Unidos, Betão, tentou a carreira de cantor, mas virou gerente de banco e Samanta, só para os amigos, aplica na bolsa, está ricaço, mora num bairro chic. E magrão, que não havia entrado na história, fez operação do estômago, chegou a 100 quilos, passa bem, se separou de Lilica,(que conhecera no Tróleibus) mas continuam amigos, com 3 filhos.

E esse que vos escreve é apenas um rapaz latino-americano que gosta de lembrar daqueles saudosos tempos, pai de dois garotos lindos, com uma esposa maravilhosa que conhecera na Sé.

É isso.

história publicada em 19/1/2007, no saopaulominhacidade.com.br

silvio lima
Enviado por silvio lima em 12/10/2009
Reeditado em 12/10/2009
Código do texto: T1861124
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