PEREGRINO DA MISÉRIA (Comente)

A barba e o bigode, por serem volumosos, rompiam a superfície da face. A pele delgada confundia-se com uma película sobre a estrutura óssea desnutrida. Os dentes, esfarrapados separados por uma distância considerável, se perdiam entre o espaço da boca. Para alguns, aquele homem era um pobre diabo, vítima condicional da própria sorte. Para outros, uma aberração criada pela própria sociedade. Mas qualquer julgamento não viria mudar o seu destino. Pois a lata de lixo foi sua melhor herança, e a sobrevivência sua resposta mais que legítimo.

Logo cedo já estava de pé, revirando as latas de lixo, selecionando-o, de maneira mais nobre. Examinava cada detrito com uma perícia que os anos na rua lhe deram. Naquela manhã o seu café foi uma maça. Aquela fruta curtida pelo ácido do lixo seria sua refeição matinal. Diferentemente de Adão e Eva, ele não precisava trair Deus, mas sim seu próprio estômago. Isso não pode ser considerado um pecado original. Começou a mastigar aquela maça com certa compulsão, atritando-a entre os poucos dentes, deixando minar pelo canto da boca a mistura de baba com algum caldo imundo. Quem viesse ver aquela cena poderia sair convencido que há no mundo alguém que tenha vocação para a miséria.

Todos os dias eles estava lá, em meio às latas de lixo. No mesmo lixo dos: liberais, burocratas, conservadores, capitalistas, pseudo-socialistas, intelectuais, alienados, partidários, ricos, pobres, proletários, protestantes, católicos, ateus, etc., para ele na importam os emblemas ideológicos do lixo.

A praça estava cheia as ruas tomadas pela população. Era feriado, dia da proclamação da república. As festividades já haviam começado desde cedo. Bandas marciais, desfiles de estudantes, tropas do exército e da marinha faziam suas apresentações. Todos assistiam entusiasmado aquele momento cívico. Uma chuva de papel picado era jogada de um prédio da esquina. A multidão se aglomerava para ver as bandas passarem. Foi preciso a polícia fazer um cordão de isolamento para conter as massas.

E ali estava aquele homem, “que nascera da costela putrefata do Estado,” transpirando o seu odor em meio a tantas realidades, e sem sentir-se abençoado por existir. Olhava para aquelas pessoas sorridentes, eufóricas, bem vestidas e perfumadas. No entanto, por onde ela passava todos sentiam desprezo.

Um vento morno soprava em seu rosto. O calor do dia misturava-se com da multidão tornando-o mais intenso. Crianças corriam de um lado a outro. Aquela aglomeração gerava uma energia própria. Toda aquela euforia patriótica, não lhe fazia nenhum sentido. Cansado de andar, sentou-se na estrutura metálica do palanque que estava montado no centro da praça. Antes mesmo que pudesse repousar seu corpo sobre a estrutura, fora atingido por uma bala perdida, disparada do meio da multidão. Possivelmente o disparo seria para alguma autoridade presente, não se soube. Um tiro certeiro na cavidade craniana. Caiu ali mesmo, com uma das mãos tateando o rosto. Talvez tentando buscar na escuridão dos últimos segundo de vida um resquício de revanche que a luz da vida lhe negara.

Marcos Marcelo Lírio
Enviado por Marcos Marcelo Lírio em 09/10/2009
Reeditado em 28/10/2009
Código do texto: T1856936